30/12/2010

O Caminho para o Sagrado

Nos séculos XV e XVI, o Renascimento foi genuinamente um re-nascimento, uma ressurreição. "Ele envolveu", como Ernest Renan disse, "ver a Antigüidade face-a-face". Porém, esse renascimento não foi uma jornada para trás nem uma simples ressurgência do passado, mas ao contrário um ponto de partida para uma nova aventura espiritual, uma nova aventura da alma faustiana, a partir de então triunfante porque finalmente despertou para si mesma. Hoje o "neo-paganismo", do mesmo modo, não é uma regressão. É, ao contrário, a escolha deliberada de um futuro mais autêntico, mais harmonioso, mais poderoso - uma escolha que projeta para o futuro, para novas criações, para o Eterno de onde viemos.

Se alguém reconhece que algo é grande, diz Heidegger, "então no início dessa grandeza reside algo ainda maior." O paganismo hoje claramente requer, em primeiro lugar, uma certa familiaridade com as antigas religiões indo-européias, sua história, sua teologia, sua cosmogonia, seu sistema simbólico, seus mitos e os mitemas dos quais eles são compostos - familiaridade de conhecimento, mas também familiaridade espiritual; familiaridade epistemológica, mas também familiaridade intuitiva. O paganismo não é apenas uma questão de acúmulo de conhecimento sobre as crenças das diversas regiões da Europa, bem como não podemos ignorar as características que os distinguem, às vezes profundamente. O paganismo também requer, acima de tudo, identificar a projeção dessas crenças, a transposição de um certo número de valores que, como herdeiros de uma cultura, nos pertencem e nos concernem diretamente. (Isso, como conseqüência, leva à reinterpretação da história dos dois últimos milênios como a história de um combate espiritual fundamental.)


Essa recuperação das tradições pagãs é uma tarefa considerável. Não apenas as religiões da velha Europa não tem nada a ceder ao monoteísmo em termos de riqueza ou de complexidade espiritual e teológica, mas nós podemos até mesmo dizer que nesse terreno elas geralmente prevalecem. Porém, quer as religiões pagãs são de fato mais ricas e mais complexas do qeu o monoteísmo não é a questão mais importante. O que é importante é que elas nos dizem respeito, e de minha parte eu tiro mais lições do contraste simbólico de Janus e Vesta, mas entendimento ético da Orestéia ou da história do desmembramento de Ymir, do que das aventuras de José e seus irmãos ou da história do quase-assassinato de Isaque.

Além dos próprios mitos, é aconselhável buscar por alguma concepção de divindade e do sagrado, algum sistema de interpretação do mundo, alguma filosofia. Mesmo para declarar a descrença na existência de Deus, como Bernard-Henri Lévy faz, pressupõe-se um monoteísmo implícito. Nossa época ainda permanece profundamento judaico-cristã em como ela concebe a história e nos valores essenciais que assume, ainda que as igrejas e sinagogas estejam vazias. Por sua vez, um pagão não precisa crer literalmente em Júpiter ou Wotan, ainda que isso não seja mais ridículo do que uma crença literal em Jeová. O paganismo contemporâneo não consiste em erigir altares à Apolo ou em reviver a adoração de Odin. Ele implice, ao invés, em olhar por trás da religião e, seguindo um procedimento tradicional, buscar o "equipamento mental" do qual a religião é o produto, o universo interior que ela reflete, a forma de apreender o mundo que ela denota. Em resumo, implica em considerar os Deuses como "centros de valores" (H. Richard Niebuhr) e as crenças das quais eles são objeto como sistemas de valores. Os Deuses e as crenças passam, mas os valores permanecem.

Isso é para dizer que o paganismo, longe de se caracterizar por uma negação da espiritualidade ou uma rejeição do sagrado, consiste ao contrário na escolha (e na reapropriação) de outra espiritualidade, de outra forma do sagrado. Longe de se confundir com ateísmo ou agnosticismo, ele interpõe, entre o homem e o universo, uma relação fundamentalmente religiosa, a qual em sua qualidade espiritual nos parece muito mais intensa, mais séria e mais forte do que o monoteísmo judaico-cristão poderia reclamar. Longe de dessacralizar o mundo, ele o sacraliza no sentido literal do termo, já que o considera sagrado, e precisamente aí é que se encontra o pagão. Portanto, como Jean Markale escreve, "o paganismo não é a ausência de Deus, a ausência do sagrado, a ausência do ritual. Muito ao contrário, ele é a solene afirmação da transcendência que começa com o reconhecimento de que o sagrado não mais reside no Cristianismo. A Europa não é mais pagã do que quando ela busca por suas raízes, que não são judaico-cristãs."

A espiritualidade , o sentido do sagrado, fé, crença na existência de Deus, religião como ideologia, religião como sistema e como instituição - todas são noções muito diferentes e não se tocam necessariamente, e não são mais unívocas. Há religiões que não possuem qualquer Deus (Taoísmo, por exemplo); a crença em Deus não implica necessariamente a crença em um Deus pessoal. Por outro lado, imaginar que todas as preocupações religiosas poderiam ser permanentemente removidas da humanidade é, aos nossos olhos, pura fantasia. A fé não é nem repressão nem ilusão, e o melhor que a razão humano pode fazer é reconhecer que a razão sozinha não é suficiente para exaurir todas as aspirações interiores do homem. Como Schopenhauer observa: "O Homem é o único ser que é maravilhado pela própria existência; um animal bruto vive em sua tranqüilidade e não é maravilhado por nada...Esse maravilhamento, que ocorre especialmente em face da morte e em vistas da destruição e desaparecimento de todos os outros entes, é a fonte de nossas necessidades metafísicas; é por causa disso que o homem é um animal metafísico." A necessidade do sagrado é uma necessidade fundamental humana, do mesmo modo que comida ou cópula. (Se alguns escolhem abrir mão de qualquer dessas, bom para elas.) Mircea Eliade nota que "a experiência do sagrado é uma estrutura da consciência", da qual não se pode abrir mão. O Homem precisa de alguma crença ou de alguma religião - distinguimos aqui religião de ética - como ritual, como ações que o confortam por sua regularidade invariável, formando parte dos padrões habituais pelos quais ele é construído. Nesse sentido, o aparecimento recente da descrença genuína esta entre aqueles fenômenos de declínio que estão desestruturando o homem no que o torna distintivamente humano. (Será o homem que perdeu a capacidade ou o desejo de crer ainda um homem? É possível postular esse questionamento.)

"É possível," Régis Debray escreve, "ter uma sociedade sem Deus; não é possível ter uma sociedade sem religião." Ele acrescenta: "Os Estados a caminho da descrença estão também a caminho da abdicação." As considerações de Georges Bataille também são pertinentes: "A Religião, cuja essência é uma busca por uma intimidade perdida, é essencialmente um esforço da consciência clara para se tornar inteiramente auto-consciente." Isso é suficiente para condenar o liberalismo ocidental. Nós certamente estaríamos dando ao judaico-cristianismo crédito demais se rejeitássemos  todos os conceitos sobre os quais ele clama monopólio simplesmente porque os clamou. Nós não precisamos rejeitar a idéia de Deus ou o conceito de sagrado simplesmente da forma doentia pela qual o Cristianismo a expressou, mais do que precisamos romper com os princípios aristocráticos simplesmente porque eles foram caricaturizados pela burguesia.

Nós deviamos notar também que na antigüidade pré-cristã a palavra "ateísmo" é praticamente insignificante. Julgamentos antigos por "descrença" ou "impiedade" são geralmente relativos, na verdade, a outras ofensas. Quando o historiador pagão Ammianus Marcellinus afirma que "há algumas pessoas para as quais o céu está vazio de Deuses", ele especifica que elas crêem, ainda assim, em magia e nas estrelas. Em Roma eram os cristãos que eram acusados de "ateísmo", já que eles não mostravam respeito pelas imagens dos Deuses ou pelos locais de adoração. Na Grécia, o próprio pensamento racional apenas reorientou a teogonia e a cosmologia mítica. É por isso que Claude Tresmontant, após ter gratuitamente associado panteísmo a "ateísmo", foi compelido a escrever que o primeiro é "eminentemente religioso", que em verdade "é religioso demais, já que indevidamente diviniza o universo." Na Europa antiga, o sagrado não era concebido em oposição ao progano, mas sim abarcava o profano e o dava significado. Não havia necessidade de uma Igreja para mediar entre o homem e Deus; toda a cidade efetivava essa mediação, e as instituições religiosas constituíam apenas um aspecto disso. O antônimo conceitual do latino religio seria o verbo negligere. Ser religioso é ser responsável, não negligenciar. Ser responsável é ser livre - possuir os meios concretos de exercitar uma liberdade prática. Ser livre também é, ao mesmo tempo, estar conectado aos outros por uma espiritualidade comum.

Quando Lévy afirmou que "o monoteísmo não é uma forma de sacralidade, uma forma de espiritualidade, mas ao contrário, é o ódio do sagrado como tal," seu comentário é apenas aparentemente paradoxal. O sagrado envolve um respeito incondicional por algo; porém o monoteísmo, em um sentido literal, bane esse respeito, colocando-o fora da Lei. Para Heidegger, o sagrado, das Heilige, é bastante distinto da metafísica tradicional e da própria idéia de Deus. Nós dizemos, para usar uma antinomia favorecida por Emmanuel Lévinas, que o sagrado se veste como um mistério nesse mundo, que ele é baseado em uma intimidade entre o homem e o mundo, em contratos à santidade, que confia na transcendência radical do Outro. O paganismo sacraliza e portanto exalta esse mundo, enquant o judaico-cristianismo santifica, e portanto reduz e diminui esse mundo.
 (Alain de Benoist, Trecho de "Comment Peut-on Etre Païen?")