12/03/2012

Valdemar Abrantes - O Herói e o Império

por Valdemar Abrantes

Escultura de Arno Breker.

Tradição Imperial guerreira é a forma assumida pela essência do espírito kshatrya.

O Imperium é sua forma macrocósmica e o Herói é sua forma microcósmica.

A visão de mundo metafísica, a aristocracia, o princípio sagrado da Honra e a exaltação da guerra como atitude do Espírito, são todos elementos próprios do germe imperial que nasce em uma elite. Germe este que se concreta no real ideal de Imperium quando ascende o enviado divino, aquele que será o centro de orientação de todo um povo e paradigma de valor, entrega e sacrifício: o líder, o rei, o imperador. Este é reconhecido pela comunidade não através de seus meros dotes administrativos ou organizacionais, ou seja, por nenhuma percepção de ordem racional; o rei ou líder só pode ser reconhecido como tal através de estratos suprarracionais do ser, precisamente através da esfera transcendente do sangue espiritual.

Um Imperium surge, em seus primórdios, de uma emanação espiritual provinda de um plano transcendente regido por Deuses solares que, através de uma mística, leva alguns poucos homens a perceberem a realidade de forma diferenciada. Este é o princípio das duas naturezas, o mundo transcendente do ser atuando sobre o mundo materializado do devir. Como imagem dessa lei sagrada vemos o governante divino Khrisna clamando ao herói Arjuna no Bhagavad-Gita: “Exceto tu, não ficará um só dos soldados que constituem os dois exércitos ... levanta-te e busca a glória, triunfa sobre teus inimigos e adquire um grande império”.

Essa força mística transmuta-se em pura vontade quando atinge os homens de espíritos superiores. Forma-se assim uma elite, cuja visão de mundo própria, aristocrática, inspirada na pura transcendência vertical, em direção às alturas, vai organizando a realidade em base dos significados superiores de todos os processos, de todos os entes e de todos os fenômenos; cria-se, enfim, um significado total de vida superior, onde o transcendente vai incorporando o imanente, no sentido de que o superior, desde uma instância olímpica e solar, vai moldando e iluminando a esfera contingente do inferior, daquilo que é reflexo e aparência do meramente humano. A esfera do sagrado forma-se, assim, pela vontade daqueles que sabem, e não pela devoção daqueles que tem fé. Quando os destinos se fixam a este ideal de vida superior surge então a marca do épico, do grandioso, do olímpico, e o sentido de uma existência pautada pelas necessidades físicas, pelos prazeres e recompensas, é substituído pela emergência do ideal heróico de vitórias e glórias. A ação supera então a contemplação e o Imperium se concreta como criação gloriosa do espírito e da tradição kshatrya. Este é o momento das conquistas, da luta metafísica contra as forças do caos e contra as raças que carregam a marca da Kali Yuga.

Essa visão de mundo aristocrática, tornada real e viva pela vontade superior dos poucos homens, vai se espalhando paulatinamente pelos estratos humanos que formam uma comunidade. Toma então preeminência, em cada ser, aquele significado interior que mais se liga ao imutável, àquilo que um homem é por toda sua existência: sua natureza própria. Surgem, assim, as castas. Estas marcam o princípio da diferença como valor social de ordenação das individualidades. Desde o plano transcendente emerge, então, através das castas, como uma calma energia, o amor pela organização, pela disciplina e o repúdio à mescla e a tudo que seja indiferenciado como sinônimo de promiscuidade. Todos os homens são postos em seus devidos lugares dentro do organismo imperial, todos só fazem aquilo que já nasceram sabendo fazer, na forma de uma intuição luminosa, segundo as limitações de suas castas. A sociedade imperial estrutura-se então como um organismo duro semelhante uma rocha, mas ao mesmo tempo leve como uma pena, e é, assim, sustentado de forma vitoriosa pelo princípio da ação mantido pela casta superior da nobreza régia e guerreira, que atua semelhante a um pai o qual é o responsável último por sua família. O mesmo organismo é ainda protegido e cuidado pelo conhecimento universal orientador contido na casta lunar dos líderes espirituais e sacerdotes, que atuam semelhante a uma mãe que cuida de seus filhos. A terceira casta, dos mercadores e profissionais, cuida, por sua vez, do funcionamento das necessidades materiais básicas do organismo social; e, por fim, a quarta casta, dos servos, subsiste como o pólo contingente a ser constantemente moldado, cuja virtude máxima dentro do organismo social é a obediência. Como projeção coletiva humana provinda do plano transcendente o organismo imperial necessita de mínimos meios coercivos para seu funcionamento e sua duração.

O Imperium, como fruto da espiritualidade solar, contida de forma mais pura na casta da nobreza guerreira, é ainda sacralizado e sua lei tornada pétrea através da ascensão da Honra como elemento de ligação dos homens com os deuses, dos homens entre si e entre suas respectivas castas. A Honra é o cimento do Imperium. É através dela que surge a exaltação da fidelidade, da lealdade e do valor, que por sua vez formam a base da Ética heróica. A Honra é, portanto, o núcleo ético do homem da tradição. É o supravalor espiritual e antimaterial por excelência. É uma verdadeira força ontológica que dentro do Imperium é capaz de parar a roda de decadência da Kali Yuga, uma vez que qualquer ato de honra tem a propriedade transcendente de quebrar a racionalidade contida nessa idade de trevas.

A lei transcendente do espírito determina o rebaixamento do fluir temporal e de tudo que é expressão deste devir a um plano secundário que necessita ser constantemente superado pela expressão daquilo que é duradouro, estável e imutável. Derivado disso surge o valor incorruptível da Ancestralidade, como significado daquilo que é permanente e por isso é marcadamente presente em todas as gerações, desde as origens. A exaltação da ancestralidade é baseada num aspecto particular da tradição que é precisamente a tradição de sangue. Esta é baseada no reconhecimento direto por parte de cada família, de cada estirpe ou de cada povo, das glórias e conquistas construídas sobre o sangue dos ancestrais. Uma doutrina de tal tipo invariavelmente é propagada em linguagem épica onde os antepassados atingem o nível do verdadeiramente divino. Como a ancestralidade possui uma essência específica de cada família, estirpe ou povo, ou seja, como cada um possui seus próprios ancestrais, ela atua, no organismo imperial, como um elemento oposto a qualquer sentido de universalismo ou de nivelamento.

Na Roma Imperial era tradição familiar o culto aos ancestrais em datas determinadas ou em funerais de algum membro, onde o rito mandava que fossem proferidos discursos em honra dos mesmos. Também se guardavam máscaras feitas de gesso do rosto dos antepassados que eram postas em evidência em determinadas datas ou cerimônias públicas.

Nota-se através da exaltação da ancestralidade que o Imperium possui um sentido histórico eminentemente contrário ao tempo linear, estando alinhado com o passado e hostil a tudo que seja promessa futura. O Imperium parece possuir um tempo próprio, um tempo compreensivo-simbólico, não extensivo-linear, que reflete não o fluir e o mero envelhecer dos entes e dos homens, como sobreposição de fatos históricos cuja valorização e preeminência são determinadas por critérios culturais, mas sim um sentido que é emanado diretamente do transcendente sendo marcado pelo direcionamento à eternidade e sincronizado com os símbolos eternos reconhecidos por todos. Por isso, estando o símbolo sagrado do progresso e da felicidade futura destruídos, qualquer avanço tecnológico-material ou antropológico que venha se dar dentro do ambiente imperial, terá por função exatamente a estabilidade e a permanência das leis que regem o império, ou seja, qualquer dita “evolução” neste sentido vem desde o alto.

Todo valor e toda expressão do plano transcendente só se sustentam de forma luminosa e ativa mediante uma natureza viril. Virilidade espiritual é uma marca, portanto, de toda elite e nobreza guerreira. Este tipo de atitude viril é uma síntese entre a força física e a coragem, como expressões diretas da vitalidade da estirpe, e a transcendência vertical; síntese essa que forjou um tipo humano superior, digno de ser eternamente relembrado. São exemplos desse tipo os patrícios e legionários romanos, hoplitas gregos e espartanos, a cavalaria medieval, dentre outros.

Todos esses exércitos verdadeiramente divinos constituíram-se como a força vital dos respectivos impérios que representavam, e tiveram como unidade formadora aquele homem que em si possui a marca transcendente do heroísmo.

O Herói é, portanto, o microcosmo da tradição kshatrya.

O Herói é um tipo de homem que além das três esferas constitutivas do ser – a esfera física corporal, a esfera psíquica, anímica, sede dos desejos e dos medos, sustentada por aquilo que se entende por alma, e a esfera propriamente espiritual, construída pelo Espírito, aquilo que o homem tem de mais semelhante à divindade – é marcado pela presença de uma quarta esfera, a esfera da Magia.

Tal dimensão mágica no Herói fez com que ele fosse admitido nas civilizações tradicionais como um intermediário entre os homens e os Deuses. É através desta esfera que o Espírito pode romper os laços anímicos e físicos que o ligam àquilo que é simplesmente humano, atingindo as alturas olímpicas mais distantes, chegando à mors triunphalis. Essa esfera mágica é uma estância essencialmente bélica, por isso o herói é um guerreiro nato, que, independente da forma cultural que assuma, governante, pensador ou criador, por exemplo, sempre sua conduta ou suas criações resultarão em armas, sejam de defesa ou de ataque. Sejam obras literárias, sejam criações de arte, provindas elas da magia heróica, terão sempre uma forma transcendente que se equivale extraordinariamente a um escudo, para defesa do Imperium, ou a uma lâmina ou arco, para ataque sobre os agentes da matéria e do caos. Esta propriedade divina do Herói só pode ser captada por uma máxima transcendência vertical, mais além de qualquer explicação metafísica ou teoria filosófica.

Esta esfera mágica possui ainda, digamos, dois pólos. O primeiro é o pólo que de onde se expressa a Honra Heróica. É através deste pólo que a tradição guerreira caracteriza-se por uma postura masculina e viril diante dos Deuses. E por falta ou pouco desenvolvimento dela é que a tradição lunar sacerdotal põe-se de forma feminina e devocional frente ao plano do divino. O outro pólo mágico é constituído de pura Vontade, e é justamente através deste pólo que a dimensão espiritual dos Deuses e Heróis mortos em combate faz-se poder, potência e ato real, e o Sagrado torna-se vivo entre os homens.

A Vontade mágica, inquebrável e invencível, é, então, o eixo de conexão entre dois mundos: o mundo macrocósmico do transcendente, o qual forma o Imperium, e o cosmos interior do homem heróico.

Por falta desta esfera mágica, ou por materialização e anquilosamento da mesma, é que a espiritualidade sacerdotal nunca constrói impérios. E sem a solaridade de um organismo imperial que se sustente a si mesmo frente às contingências do mundo material e humano, e frente a inimigos diversos, só resta ao espírito lunar aceitar a dependência sem almejar qualquer superioridade em qualquer aspecto que seja. O Cristianismo, exemplo do espírito devocional do Oriente, deve sua existência aos organismos imperiais romano e gibelino nos quais se amparou para subsistir nos povos do Ocidente. Portanto, o puro sacerdote, o fiel, o religioso, o intelectual, devem venerar por toda comunidade o heroísmo régio aristocrático como o verdadeiro agente paterno de proteção e sustentação de todo organismo.

Toda vez que a casta sacerdotal deseja tomar preeminência em alguma tradição originalmente guerreira e imperial, ela assume o papel do vírus da antitradição, e, propagando um universalismo próprio, destrói o sentido vertical que tinha a contemplação quando sustentada pelo heroísmo do ambiente imperial. O sacerdote, ou sua forma mais cultural assumida pelo intelectual, transformam-se então em agentes de desagregação, dissolvendo o elo de ligação do plano transcendente do divino com mundo dos homens, que atuava como elemento primordial e justificativo de todos os processos. Rompe-se a ligação do corpo com o espírito, confunde-se o concreto com o abstrato, esquece-se a substância por trás do real, o sagrado vai, então, recolhendo-se para um lugar em separado, um subterrâneo anímico, passando a ser acessível somente através de estados psíquicos do ser, sejam eles de culto devocional, sentimentalistas ou mesmo de euforia tribal; em todos esses estados o sentido espiritual vai decaindo ao longo do tempo. Esta separação horizontal vai de encontro a estrutura vertical e hierárquica do mundo da Tradição, originando, então, um certo sentido de nivelamento; assim, desde instâncias meramente psicológicas, lunares, sem o crivo do Espírito, da Vontade e da Honra, este nivelamento transforma-se em força ativa, e posteriormente resultará em igualitarismo, democracia e direitos humanos. O mesmo processo é passível de ocorrer quando na terceira casta emerge o mesmo desejo de domínio, surge, então, através dela, o materialismo capitalista, a subversão, a visão de mundo mecânica, o amor pelo luxo e pela usura. O mesmo, ainda, pode ser dito quando os servos desejam preeminência, nascendo então o caos espiritual, o rebaixamento intelectual, a brutalidade, a promiscuidade e a perversão. Este é o próprio sentido da decadência da Kali Yuga.

O homem heróico é caracterizado ainda, na esfera física do corpo, por uma vitalidade e uma força física calma, uma resistência a condições intempéries fora do comum e um vigor supra-humano. No âmbito psíquico, na esfera lunar da alma, contida em cada homem, o herói é marcadamente intenso e verdadeiro em todos os seus desejos, mas estes são fixados num limiar superior pelo ethos heróico que, como foi dito, é reflexo direto da Honra como medida de todos os atos. Fidelidade e lealdade substituem qualquer sentido de sentimentalismo anímico. Camaradagem cavalheiresca substitui qualquer mera amizade ou utilitarismo na relação entre os homens. A mulher, para o espírito heróico, é a Dama. Aquela que possui em si o mistério máximo do amor, único ponto-fraco do Herói. É aquela que lhe mostra a saída do labirinto dos rigores do mundo humano. É a inspiração inicial do superar-se a si mesmo.

Como visto, o Herói é um microcosmo ascendente, como uma flecha apontada para o alto, semelhante e análogo ao seu reflexo macrocósmico imperial.