31/08/2012

Nietzsche e o Mundo Homérico


Por Carolina Figueroa León*

Nietzsche desde o princípio apresentou um apego ao mundo grego, uma idealização deste como estrutura social, ideológica e intelectual. Esta aproximação não é especificamente com a época clássica, mas com a época arcaica que é representada através dos poemas homéricos.

Tomando em conta que o ideal que surge neste período se baseia na luta de poder, na excelência de uma classe aristocrática que é representada através dos heróis e através da areté. Neste período em que o filósofo encontra a essência do grego, porque é o momento em que se desenvolve da melhor forma a condição inerente ao ser humano: o instinto e a vontade de poder. Portanto, ao tomar esta leitura deixamos de lado a visão de que estes poemas remetem necessariamente à época micênica, senão que por sua vez estão carregados de elementos ideológicos, morais e sociais correspondentes à época em que escreve Homero.

Para compreender como este ideal guerreiro baseado em uma moral agonística se encontra na sociedade aristocrática arcaica é necessário analisar a obra homérica, a qual se deve relacionar com o contexto do século VIII a.c. e desde aí contrastar com as posturas de Nietzsche, as quais se encontram em seus primeiros escritos mais filológicos como O Estado grego e A luta de Homero.

Portanto, é importante analisar o contexto histórico de enunciação destas epopeias, ver se este realmente se vê representado em ditas obras e finalmente analisar o problema a partir da leitura nietzschiana da cultura grega.

O mundo homérico e a moral agonística

O chamado mundo homérico é o que historicamente corresponde à época arcaica da cultura grega, em que se assentam as bases do crescimento e surgimento das grandes polis. Para Nietzsche é neste momento específico em que se daria o apogeu da cultura grega, não o mundo clássico que foi modificado pelo Romantismo e os filólogos classicistas: “Mas os gregos aparecem ante nós, já que a priori, precisamente pela grandeza de sua arte, como os homens políticos por excelência (...) Tão excessivo era nos gregos tal instinto (...) a expressão triunfal de tigres que mostravam ante o cadáver do inimigo; em suma, a incessante renovação daquelas cenas da guerra de Tróia, em cuja contemplação se embriagava Homero como puro heleno”[1].

Para começar esta análise é necessário nos remeter à época arcaica em si, para logo trabalha-la em comparação à homérica. A época arcaica é quando se destaca a imagem de um governo aristocrático precedente à democracia. Para autores como Francisco Rodríguez Adrados, este período é denominado a sociedade homérica, já que se baseia na mesma estruturação social que dão conta os poemas homéricos, posto que na cabeça da sociedade está o rei (Basileus) e este é secundado por aristocracia que na épica é representada na imagem dos heróis. Portanto, os pontos de reconstrução do ideal aristocrático se dão em Homero, quem logra encarná-los em seus poemas. Para Rodríguez Adrados isto se deveria a que o pensamento racional em que foi constituído esta aristocracia se baseia no mito principalmente.  Portanto, Homero plasma através de suas obras tal realidade, a qual se mescla com a mitologia existente de Micenas, mas por sua vez e com maior força aludindo a seu século [2].

Frente à utilização dos mitos como reconstrução de identidade e histórica, Rodríguez Adrados refere: “Se trata de uma sabedoria tradicional, de um espelho de conduta posto no passado e no aceitado tradicionalmente, que não tem porque ter uma coerência absolutamente rigorosa” [3].

Dentro deste tipo de sociedade vemos a imagem do homem que é similar aos deuses, com a única diferença que é mortal. Esta aristocracia por sua vez se caracteriza por uma moral agonística que se assenta nos valores como honra (time) e virtude ou excelência (aretê). Estes se encontram presentes já em grande medida na epopeia grega: “A moral da aristocracia grega é na epopeia essencialmente competitiva ou agonística” [4].

Esta imagem podemos percebê-la já que na maior parte do pensamento dos heróis, no caso da Ilíada, por exemplo: Glauco narra como seu pai Hipóloco o manda lutar a Tróia, o dizendo que é preferível que regresse morto, antes que derrotado e sem lograr ser o primeiro em batalha: “Me insto muitas vezes a ser o primeiro e me destacar entre os outros e a não desonrar a linhagem de meus pais que foram os primeiros em Feira e na vasta Licia” [5].

Frente a esta imagem da desonra da linhagem surge a noção de que o herói sempre deve ser virtuoso e é a partir deste elemento que surge o conceito de aretê. Esta excelência em primeiro momento se dá a nível de linhagem, já que sempre o herói é de uma família nobre. Esta traz o prêmio e a fama, o qual se demonstra através das botinhas que se recebia (Geras) logo depois da façanha.

A aretê que surge no ideal heroico é o que conforma a excelência da nobreza da sociedade arcaica, já que neste ideal assentam suas bases, que resgatam esses reis e heróis, porque são a representação de sua classe.

Finley também se refere á idéia que a aretê heroica é símbolo da nobreza quando nos afirma que isto se faz patente em Odisséia: “Particularmente na Odisséia, a palavra “herói” é uma expressão de classe para toda a aristocracia, e as vezes até parece compreender todos os homens livres”[6].

Podemos tomar o afirmado por Finley no seguinte fragmento da Odisséia: “Amanhã – indicou Atena a Telêmaco – convoca no ágora os heróis aqueus” [7]. É nesse sentido que a aretê se converte em um valor de ensinamento frente a esta sociedade. O que já é afirmado por Jeager em A Paideia [8] Para ele, o ideal de aretê é exemplificado através dos mitos heroicos. Precisamente neste sentido a educação do século VIII se baseia nas epopeias. Os cantos épicos se convertem em uma educação moral, em que se ensina que a aristocracia possui uma excelência que é natural. Mas apesar de ser uma condição imanente ao nobre, a aretê se deve demonstrar individualmente. Portanto, há que esforçar-se para conseguí-la, o que se vê na Ilíada quando nos narra que Aquiles foi treinado para vencer na arte da guerra por Fênix. O que nos apresente no canto IX quando Fênix trata de persuadir Aquiles para que volte a lutar com os aqueus: “O ancião cavaleiro Peleo quis que eu te acompanhasse no dia em que te enviar de Ptía a Agamenon. Todavia criança e sem experiência da funesta guerra nem do ágora (...) e me mandou que te ensinará a falar e a realizar grandes feitos (...) te criei até fazer-te o que és”[9].

Neste ponto vemos que não só importa a natureza especial do nobre, mas que há que desenvolvê-la e a partir disto é que se reconhece seu mérito.

Seguindo com as características desta excelência, surge a imagem da doxa, que se relaciona com a opinião que o resto possui do herói, é esta a que da posteridade e transcendência encarnada na Fama. Portanto, como antes mencionei, tal valor se representa através dos objetos materiais como os despojos de guerra. Portanto, a culminação desta doxa é a Glória ou kleos. Neste sentido ocorre a disputa entre Aquiles e Agamenon, já que ninguém dos dois pôde ficar sem uma escrava, que seja o exemplo tangível de seu triunfo. É por isso que a única forma para que Agamenon não perca sua honra ao entregar sua escrava a Apolo é remover a de Aquiles, posto que este é um igual.

Ao revistar este exemplo de Ilíada vemos que no mundo aristocrático não há uma diferença entre o parecer e o ser, ambos elementos são a mesma coisa, portanto, o que prima é a aparência principalmente. Devido a esta visão do homem é que surgiria a antes mencionada doxa que é a opinião, a que afirma o reconhecimento por parte do outro. Ao conseguir tal aceitação o herói pode chegar a tal (euphrosyne), que se representa através do despojo e do banquete “ O agathós ou homem destacado tem alguns meios de fortuna proporcionados. Isto se deduz do paralelismo que se estabelece entre a time ou honra de cada chefe e a parte de despojo que recebe”[10].

Outro ponto importante é o das riquezas, que também é outro componente da excelência. O qual se representa através das pertenças do oikos, tais como terras, gado, criados, escravos, etc. Todos estes bens se transmitem diretamente por via de herança. Daqui podemos desprender como nos afirma Rodríguez Adrados que, quando o nobre não pratica a guerra, desfruta da riqueza em seu lugar. Isto nos fica bastante claro na imagem do Banquete em Odisséia [11].

Para concluir este imaginário do mundo homérico me parece importante ressaltar que: “É uma sociedade voltada para o mundo, não a outra vida nem ao homem interior; mas com um ideal de heroísmo ao próprio tempo. O ideal se encarna no nobre, o homem superior ou excelente, cuja aretê é fundamentalmente competitiva, mas pode desembocar no sacrifício ou na alegria de um viver refinado” [12].

Tomando esta citação compreendemos que a aristocracia se conforma a partir de sua riqueza, e devido a isto é fundamental entre os nobres fomentar vínculos com seus iguais, o qual se dá através da hospitalidade, já que se atende a alguém do mesmo valor moral e social. Neste sentido também se volta importante uma espécie de relação de parentesco dentro da que surge certo intercâmbio econômico representado em presentes (hedna). Na Odisséia se faz patente esta relação de hospitalidade através da narração da viagem de Telêmaco pelas cortes gregas, onde é bem recebido e por sua vez se atende tal como se formara parte da família, sem importar de onde venha, nem as fronteiras que os separam. Outro exemplo chave é o fato que conduz à Guerra de Tróia, a falta da hospitalidade de Paris (Alexandre) frente a Menelau ao raptar Helena.

A luta de Nietzsche

 O fascínio do filósofo pelo grego parte já de sua infância, na época em que vive com seu avô materno, quem o aproximará ao grego a partir das leituras de Homero que realiza. É neste ponto que o grego se converte em um refúgio para Nietzsche, quem detesta a educação petista na que cresceu, já que o grego se converte na antítese e anti-utopia frente á miséria de sua existência cotidiana cristã-protestante. A partir deste fascínio surge uma imagem do grego que irá contra o pensamento filológico de sua época, para quem a essência do grego se daria no século V ateniense, em pleno Classicismo. Para Nietzsche isto não é o grego, mas o pré-clássico, principalmente assentado no pré-socrático e em Homero.

O que se relaciona com as afirmações de Arsênio Ginzo em seu artigo “Nietzsche e os gregos”: “Nietzsche havia chegado cedo à conclusão de que a visão da Grécia transmitida pelo Classicismo alemão era instatisfatória. Já com anterioridade à publicação de O nascimento da tragédia, Nietzsche havia distanciado da imagem da Grécia dos clássicos alemães (...) A partir de 1869, quando começa sua atividade como professor em Basiléia, Nietzsche mostra claramente que resulta insatisfatória essa imagem da Grécia (...) A razão do rechaço nietzschiano consistia em que primeiro os clássicos e depois seus epígonos nos haviam transmitido uma imagem falsa da Antiguidade, uma <<falsa Antiguidade>>, idealizada, unilateral, domesticada” [13].

Este distanciamente o leva a afirmar que o centro de gravidade do grego já não é o século de Péricles, como afirmava o resto dos filósofos alemães de sua época, mas antes o século VI ou talvez antes: “Aqui se encontrariam a seu juízo os verdadeiros gregos, uma cultura grega todavia não falsificada nem debilitada, aqui residiria a <<origem criadora>> de uma cultura ocidental, a modo de referente paradigmático que lamentavelmente havia caído em esquecimento ou bem havia diluído seus perfis”[14].

Partindo desta imagem do grego contextualizada na época arcaica vemos que Nietzsche descobre neste o melhor exemplo da vontade de poder, a idéia de luta, de sobrepor-se ao outro, que define ao ser humano, o que estaria representado em Homero. E é neste contexto que se percebe a crueldade, a inveja, um gosto pela destruição, dando conta que a destruição é algo próprio do ser humano. Os gregos não forma deshumanos, mas os homems mais humanos dos tempos antigos. Aceitam, não inventam nada papra criar outra humanidade alternativa. A luta para Nietzsche é antes o fim da cultura e educação. E isto é o que afirma em seu texto A luta de Homero, onde a força do agon é o valor mais transcendente dentro da sociedade homérica. Esta imagem apontaria no pensamento do filósofo à noção de um grande desenvolvimento cultural, que só se havia logrado em tal sociedade. Ele não queria pensar na humanidade da antiga Grécia sem sua selvageria, na cultura em sua vigorosa natureza, nem na beleza de seu mundo sem todo o terrível e feio que formavam parte dele:

Assim vemos que os gregos, os homens mais humanos da antiguidade, apresentam certos traços de crueldade, de frieza destrutiva; traço que se reflete de uma maneira muito visível no grotesco espelho de aumento dos helenos (...) Quando Alexandre perfurou os pés de Batis, o valente defensor de Gaza, e atou seu corpo vivo ás rodas de seu carro para arrastá-lo entre as provocações de seus soldados, esta soberba nos parece como uma caricatura de Aquiles, que tratou o cadáver de Heitor de uma maneira semelhante (...)” [15]

Ao afirmar isto vai contra o otimismo do progresso que foi instaurado a partir do Iluminismo. Para Nietzsche o grego é a antítese do que odeia de sua época. Para ele os gregos seguem sendo o que haviam sido para os clássicos: paradigmas da humanidade, cultura do homem político, mas a imagem que tinha começou a oscilar entre a simplicidade da concepção clássico e o vigor, inclusive a atrocidade de uma cultura pagã, cujos valores representavam a antítese da história cristã.

É em meio a este ideal que começa a afirmar seu projeto de desmascaramento da cultura ocidental como uma luta, uma conquista e a partir disto se homologa com a sociedade homérica. Para ele tudo é visto como uma missão, os gregos eram construtores de cultura, de sua cidade, este não era um agon pessoal. De aí que Nietzsche não entenda o conceito de fama só como um reconhecimento egoísta que se comprova através dos bens materiais. E sim antes é outorgada pela coletividade. Por exemplo, a fama à que apela Aquiles tem que ver antes com a doxa, o que nos fica clarro através da idéia que os aqueus veem possível triunfo em Tróia se Aquiles não decide voltar a lutar. A partir deste exemplo podemos situar a idéia da individualidade que representa o herói para Nietzsche:

Cada ateniense, por exemplo, devia desenvolver sua individualidade naquela medida que podia ser mais útil a Atenas e que menos pudesse prejudica-la (...) cada jovem pensava no bem-estar de sua cidade natal, quando se lançava, bem à carreira, ou a tirar ou cantar; queria aumentar sua fama entre os seus; sua infância ardia em desejos de mostrar-se nas lutas civis como um instrumento de salvação para sua pátria (...)” [16] 

Analisando o texto O Estado grego de Nietzsche se visualiza seu ideal de um Estado orientado para a cultura, mas que deve ser fundamentalmente hierarquizado e fundamentado em base à escravidão. Nietzsche glorifica a pólis grega antiga como um arquétipo anti-socialista e anti-liberal. Uma sociedade hierarquicamente estruturada, cruelmente opressiva, cuja excelência cultural provém da implacável exploração dos escravos. Este ideal iria contra a organização burguesa da modernidade. Finalmente, quando conclui seu ensaio louva Platão como o grande teórico do Estado, mas o critica por ser o artífice da Idéia, que será o que ficará na criação do Cristianismo e uma filosofia metafísica. [17]

Outro dos pontos que resgata neste texto em relação á sociedade homérica é a noção de indivíduo excepcional que de desprende da imagem do herói, que possui virtude (aretê) e que é quem logra levar a cabo a culminaçãp da grande cultura e determinam o curso da história.

Em relação a esta idéia do homem excepcional podemos tomar em contra a noção do herói homérico seguindo as afirmações de Moses Finley em seu texto O mundo de Odisseu: “A idade dos heróis, tal como entendia Homero, foi, pois, uma época em que os homens superavam os padrões sucessivos de um grupo de qualidades específicas e severamente limitadas” [18].

A partir dessa noção de Finley podemos relacionar a visão do termo da individuação e por sua vez a imagem do gênio excepcional afirmada por Burckhardt.

Burckhardt em seus estudos relacionados com o Renascimento começa a afirmar que esta é a época em que surge a imagem do gênio, a idéia do desenvolvimento da individualidade do artista, elemento que romperia com o anonimato presente na arte da Idade Média. O que para ele se entenderia a partir do descobrimento do homem como homem. O artista agora aspira à fama terrestre, já não à espiritual tal como se via na Idade Média. Seu móvel é a glória, ser reconhecido por seus logros artísticos. Se perde totalmente a idéia medievalista do homem que vê a atividade terrestre como um passo ou preparação à vida celestial. O homem moderno ou renascentista para Burckhardt vê antes que a atividade que realiza  recai em seu presente e em suas glórias futuras, é antes um benefício imediato ao que pode ascender. É assim como Burckhardt afirma que este novo homem já não é passivo e receptivo, mas que antes se transforma em um grande criador. Um produtor de cultura. [19].

Esta idéia logo é aplicada por Nietzsche, quem entende a este gênio como um indivíduo excepcional que surge em toda sociedade como o artista ou militar. Tomando esta idéia, Nietzsche afirma o princípio de individuação que estará presente em sua obra O nascimento da tragédia. Este princípio se relaciona com a vontade individual que propõe Schopenhauer, a qual se relaciona com a denominada volição individual que é antes uma maniestação limitada da vontade que se daria a nível do mundo objetivo. Portanto, a vontade seria algo inconsciente que se manifesta no amor à vida de cada um dos indivíduos. A partir destas idéias afirma que o mais importante é entender que todos os fins que persegue o homem estão impulsionados por uma vontade que é original. A essência do mundo é a vontade, levada à vida mesma, sendo esta algo íntimo do ser, o que relacionamos com a noção do núcleo do indivíduo, com sua natureza humana [20].

E é neste sentido que se afirma que o Estado deve preocupar-se deste indivíduo excepcional, que afirma uma vontade natural de aspirar à glória, seguindo as afirmações de Burckhardt. Devido a sua genialidade, Nietzsche afirma que o resto do povo (laos) deve se submeter, já que graças a esta escravidão estes gênios podem ter o tempo suficiente para o ofício e em meio dele criar cultura:

Com o fim de que haja um terreno amplo, profundo e fértil para o desenvolvimento da arte, a imensa maioria, ao serviço de uma minoria e mais além de suas necessidades individuais, há de submeter-se como escrava à necessidade da vida a seus gastos, por seu plus de trabalho, a classe privilegiada há de ser subtraída à luta pela existência, par que crê e satisfaça um novo mundo de necessidades” [21].

Ao ofício a que se refere Nietzsche não é o que atualmente entendemos como Estado de não atividade, senão que pelo contrário tomando a noção de ofício grega em que os artistas só se dedicavam a produzir cultura. É a partir desta idéia que Nietzsche nos propõe que para os gregos o trabalho era vergonhoso e frente a isto os disse:

O trabalho é uma vergonha porque a existência não tem nenhum valor em si: mas se adornamos esta existência por meio de ilusões artísticas sedutoras, e lhe conferimos deste modo um valor aparente, ainda assim podemos repetir nossa afirmação de que o trabalho é uma vergonha, e por certo na segurança de que o homem que se esforça unicamente por conservar a existência não pode ser um artista” [22].

Neste texto também podemos ver que se desprende esta defesa da moral agonística grega, da luta, o uso da violência para poder criar cultura, de aqui que para ele a escravidão se converta em uma horrível necessidade:

Os gregos se revelaram com seu certeiro instinto político, que ainda nos estágios mais elevados de sua civilização e humanidade não cessou de advertir-lhes com acento bronzeado: “o vencido pertence ao vencedor, com sua mulher e seus filhos, com seus bens e com seu sangue. A força se impõe ao direito, e não há direito que em sua origem não seja demasia, usurpação violenta” [23]. 

Por sua vez através desta visão violenta, de destruição e força, Nietzsche nos afirma como exemplo Iliáda: “a expressão triunfal de tigres que mostravam ante o cadáver do inimigo; em suma, a incessante renovação daquelas cenas da guerra de Tróia, em cuja contemplação se embriagava Homero como puro heleno” [24].

Em relação à imagem do gênio extraordinário, Nietzsche toma Homero, o qual se afirma em seu texto Homero e a filologia clássica. Neste trabalho, apresentado na inauguração de sua cátedra de filologia em Basiléia, não se mete na questão homérica, senão que antes interessa o que este como figura em si simboliza. Deste ponto de vista para o filósofo, Homero se converte em um modo de viver, uma política, um ideal religioso e na criação de um panteão de deuses.

Resgata Homero como o indivíduo excepcional que logra sublimar  a tradição, posto que já não é o poeta quem possui uma vontade racional, portanto, nega o conceito de tradição homérica. Há para Nietzsche o desenvolvimento dinâmico de um poeta que se eterniza em um futuro. Para os filólogos da época, Homero recolhe uma tradição de muitos séculos, a concretiza e a escreve. Mas Nietzsche disse que Homero não é isso, que não há uma vontade, e sim uma dinâmica. Para ele a única forma de abordar Homero é através da arte, não da razão, escrevê-lo através da experiência: “a possibilidade de um Homero se faz cada vez mais necessária. Se desde aquele ponto culminante voltamos atrás, encontramos logo a concepção aristotélica do problema homérico. Para Aristóteles é o artista imaculado e infalível que tem perfeita consciência de seus meios e de seus fins; com isto se revela também com a ingênua inclinação a aceitar a opinião do povo que adjudicava Homero a origem de todos os poemas cômicos, um ponto de vista contrário á tradição oral na crítica histórica (...) é necessário perguntar-se se existe uma diferença característica entre as manifestações do indivíduo genial e a alma poética de um povo” [25].

A excelência da alma individual que não inventa nada, que eleva a outra categoria à alma popular. O que nos leva a entender que personagens como Homero não são mais uns, senão que sublimam, que são excepcionais e que levam a outra categoria a uma tradição, dado por sua individualidade, seu caráter excepcional: “Agora se compreende pela primeira vez o poder sentido das grandes individualidades e das manifestações de vontade que constituem o mínimo evanescente da Humanidade; agora se compreende que toda verdadeira grandeza e transcendência no reino da vontade não pode ter suas raízes no fenômeno efímero e passageiro de uma vontade particular; se concebem os instintos da massa, o impulso inconsciente do povo como a única primavera, como o único palanque da chamada história do mundo” [26].

Para Nietzsche. Homero não só recompilou a poesia oral, visto que sem a figura do bardo não existiria Ilíada Odisséia: “Nós acreditamos em um grande poeta autor da Ilídia e Odisséia; sem embargo, não acreditamos que este poeta seja Homero” [27]. Esta é uma visão muito distinta da que afirmam os estudiosos da questão homérica. Nietzsche afirma uma terceira visão, diferente da noção que foi afirmado, em que se vê Homero como um personagem qualquer. Nietzsche ao invés disso disse que suas obras são produto de uma excepcionalidade, o que se relacionaria com o princípio de individualidade que aparece em o nascimento da tragédia. De onde se desprende a idéia que os personagens individuais determinam o curso da história.

Como temos visto, Nietzsche é muito certeiro ao realizar uma leitura do mundo homérico, e tomar deste aquela idéia que através do ideal guerreiro se pode lograr antes de tudo produzir cultura, portanto, não é tão azaroso que em Grécia se tenha dado a grande formação da cultura de Ocidenten, o qual claramente só se pode conseguir a partir da guerra, a que eles chamavam polemos. Daqui que a educação que se recebera aludira exatamente a um ideal guerreiro baseado na noção de aretê, a qual se lograva tanto a nível de trabalho individual como por sua vez pelo simples fato de nascer nobre. Portanto, os gregos foram uma cultura que se educou e conformou na base da noção de uma moral agonística, em que sempre há um que é superior ao outro. Mas ambos heróis estão na mesma altura, já que ambos possuem as mesmas características de nobreza, entendida através do termo aristoi. Daqui que se repete potentemente a imagem de Heitor, quem Homero nos apresenta como o único herói que poderia competir com a potencialidade de Aquiles. Desde este ponto me parece interessante o resgate que realiza Nietzsche frente ao que o resto de seus contemporâneos haviam considerado dentro dos estudos filológicos o menos importante, o mais bestial, que não teria comparação com ao nível artístico do século V. E é neste sentido que depois da conclusão que se a sociedade arcaica não tivesse sido constituída a partir desta noção de agon, não se tivesse logrado mais adiante tais manifestações culturais tão magnânimas que nos tem deixado o século V ateniense.

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*Carolina Figueroa León é bacharel em Humanidades e Ciências Sociais. Licenciada em Literatura Criativa da Universidade Diego Portais com um Menor em menção em Cultura Clássica. Estudante do Programa de Magíster em Estudos Clássicos da Universidade Metropolitana de Ciências na Educação (UMCE).

[1] Nietzsche, Friedrich, O Estado grego. (Obra Póstuma) Prólogo de um livro que não foi escrito, 1871, p. 6

[2] Ver Rodríguez Adrados, Francisco, La democracia ateniense, Editorial Alianza, España, 1998.

[3] Ibíd., p. 32

[4] Ibíd., p. 36

[5] Homero, La Ilíada, Canto VI, Editorial Plaza y Janés, Barcelona, 1961, p. 154

[6] Finley, M.I., El mundo de Odiseo, Fondo de Cultura Económica, España, 1995, p. 30

[7] Ibíd., p. 20

[8] Ver Jaeger, Werner. “Capítulo II: Cultura y educación de la nobleza homérica” en Paideia: los ideales de la cultura griega, Editorial Fondo de Cultura Económica. México, 2001, pp. 32-47.

[9] Homero, Op. cit., pp.226-228

[10] Rodríguez Adrados, Op. cit., p.39

[11] Ver Homero, La Odisea, Canto XVII. Se menciona um banquete no cual se encontram os pretendentes de Penélope.

[12] Rodríguez Adrados, Op.cit., p.38

[13] Ginzo, Arsenio, “Nietzsche y los griegos”, Polis. Revista de ideas y formas políticas de la Antigüedad Clásica, núm. 12, 2000, p.103

[14] Ibíd., p.106

[15] Nietzsche, Friedrich, La lucha de Homero. Prólogo para um libro que não foi escrito (Obra póstuma) (1871-72).

[16] Ibíd.

[17] Nietzsche, Friedrich, Op. cit., pp.1-9

[18] Finley, M. I., Op.cit., p.30

[19] Burckhardt, Jacob, La Civilización del Renacimiento en Italia, Vol. I (New York: Harper & Row, Publishers, 1958), pp.143-174

[20] Véase Schopenhauer, Arthur, El mundo como voluntad y representación, 1844 (2º Edición, con los Suplementos).

[21] Nietzsche, Friedrich, Op. cit., 1871.

[22] Ibíd.

[23] Ibíd.

[24] Ibíd.

[25] Nietzsche, Friedrich, Homero y la filología clásica. Trabalho apresentado em Basilea no ano de 1869.

[26] Ibíd.

[27] Ibíd.