17/12/2013

Richard Wolin - Carl Schmitt: O Hábito Conservador Revolucionário e a Estética do Horror

por Richard Wolin



"A polêmica discussão de Carl Schmitt sobre o Romantismo político oculta as oscilações estetizadores de seu próprio pensamento político. Nesse sentido, também, uma similaridade de espírito com a intelligentsia fascista se revela" - Jürgen Habermas, "Os Horrores da Autonomia: Carl Schmitt em Inglês".

"O ápice da grande política é o momento em que o inimigo vem à vista na clareza concreta como o inimigo" - Carl Schmitt, "O Conceito do Político".

Apenas meses após a ascensão de Hitler ao poder, o eminentemente citável filósofo político e jurista Carl Schmitt, na obra ominosamente intitulada, Staat, Bewegung, Volk, lançou mão de um de seus ditos mais populares. Em 30 de janeiro de 1933, observa Schmitt, "pode-se dizer que 'Hegel está morto'". Na vasta literatura sobre o papel de Schmitt na conquista Nacional-Socialista do poder, pode-se encontrar muitos comentários sobre essa afirmação, que de fato diz muito. Mas tenhamos certeza de início de capturar o sentido de Schmitt, pois ele rapidamente nos lembra o que ele não quer dizer com esse pronunciamento: ele não pretende impugnar a consagrada tradição do étatisme alemão, isto é, da "Filosofia de Estado" alemã, em meio a qual Schmitt gostaria de enumerar suas próprias contribuições aos anais do pensamento político. Ao invés, é Hegel enquanto filósofo da "classe burocrática" ou Beamtenstaat que foi definitivamente ultrapassado com o triunfo de Hitler. Pois a "burocracia" (cf. a caracterização de Max Weber da "dominação burocrático-legal") é, segundo sua essência, uma forma burguesa de governo. Enquanto tal, essa classe de funcionários públicos - que Hegel na Rechtsphilosophie considera a "classe universal" - representa um fardo impermissível sobre a soberania da autoridade executiva. Para Schmitt, seu modo característico de funcionamento, que é baseado em regras e procedimentos que são fixos, pré-estabelecidos, calculáveis, a qualifica como a própria corporificação da normalidade burguesa - uma forma de vida que Schmitt buscava destruir e transcender em virtualmente tudo que ele pensou e escreveu durante a década de 20, pois a própria essência da conduta burocrática de negócios é a reverência pela norma, uma posição que não poderia existir em grande tensão com as doutrinas do próprio Carl Schmitt, que sabemos ser um filósofo do estado de emergência - do Auhsnamhezustand (literalmente, o "estado de exceção"). Assim, aos olhos de Schmitt, Hegel havia estabelecido um precedente ignominioso ao conceder a essa classe universal putativa uma posição de preeminência em seu pensamento político, na medida em que a primazia da burocracia tende a diminuir ou suplantar a prerrogativa da autoridade sobreana.

Mas por trás da crítica de Hegel e da afirmação provocativa de que a ascensão de Hitler coincidia com a morte metafórica de Hegel (uma afirmação, que ainda que verdadeira, deveria ter oferecido, a Schmitt, pouca causa para celebração) subjaz uma outra acusação, pois nas afirmações citadas, Hegel é simultaneamente percebido como defensor do Rechtsstaat, do "constitucionalismo" e do "princípio da legalidade". Portanto, na história do pensamento político alemão, as doutrinas desse filósofo extremamente alemão provam ser algo como um Cavalo de Tróia: elas representam uma avenida primária pela qual as formas burguesas de vida política alógenas infiltraram as tradições sadias e autóctones germânicas, que possui como um de seus traços uma rejeição do "constitucionalismo" e tudo que ele implica. O pensamento político de Hegel assim representa uma ameaça - e agora nós encontramos outros dos termos fundamentais de Schmitt da década de 20 - à homogeneidade alemã.

As observações contundentes de Schmitt relativas à relação entre Hegel e Hitler expressam a idéia de que uma tradição na vida cultural alemã - a tradição do idealismo alemão - chegou a um fim e um novo conjunto de princípios - baseado em efeito na categoria da homogeneidade völkisch (e tudo que isso implica para o futuro político da Alemanha - emergiu para tomar seu lugar. Ou, para expressar o mesmo pensamento em outros termos: uma tradição baseada no conceito de Vernuft ou "razão" cedeu lugar a um sistema político cuja nova raison d'être era o princípio de decisão autoritária - cuja corporificação consumada era o Führerprinzip, um dos pilares ideológicos do Estado pós-hegeliano. Certamente, a percepção de Schmitt permanece fonte de fascinação devido a sua presciência assombrosa: em uma afirmação de umas poucas palavras, ele consegue expressar a quintessência de uns 100 anos de desenvolvimento histórico alemão. Ao mesmo tempo, essa afirmação também permanece valiosa na medida em que serve como prisma pelo qual as andanças da própria biografia intelectual de Schmitt vem a um foco singular: ela representa uma declaração não ambígua de sua saciedade em relação aos experimentos alemães prévios com governo constitucional e com seu desejo por um Führerstaat em que as ambivalências do sistema parlamentar seriam abolidas de uma vez por todas. Acima de tudo, porém, sugere o quão prontamente Schmitt pessoalmente fez a transição de antagonista intelectual da democracia de Weimar a apoiador convicto da revolução Nacional-Socialista. Aqui está o que se pode chamar de paradoxo de Carl Schmitt: um homem que, nas palavras de Hannah Arendt, era um "nazista convicto", mas que "cujas engenhosas teorias sobre o fim da democracia e do governo legal ainda geram uma leitura impressionante".

O ponto focal de nossa investigação será o "hábito" (Bourdieu) intelectual distintivo que facilitou a transformação de Schmitt de respeitado jurista e acadêmico de Weimar a "jurista-mor do Terceiro Reich". Para compreender a base intelectual das visões políticas de Schmitt, é necessário apreciar suas afinidades eletivas com aquela geração de pensadores chamados conservadores revolucionários cuja visão-de-mundo foi tão decisiva em virar a maré da opinião pública contra a nascente República de Weimar. Como o teórico político Kurt Sontheimer notou: "Dificilmente seria questão controversa hoje que certas predisposições ideológicas no pensamento alemão em geral, mas particularmente no clima intelectual da República de Weimar, induziram um grande número dos eleitores alemães a considerar o movimento Nacional-Socialista como menos problemático do que ele demonstrou ser". E ainda que os Nacional-Socialistas e os conservadores revolucionários não concordassem em muitos pontos, seus respectivos planos para uma nova Alemanha eram suficientemente próximos para que uma comparação entre eles seja capaz de "lançar luz sobre a atmosfera intelectual na qual, quando o Nacional-Socialismo emergiu, ele podia ser visto como uma doutrina mais ou menos apresentável". Daí "o Nacional-Socialismo derivou lucro considerável de pensadores como Oswald Spengler, Arthur Moeller van de Bruck e Ernst Jünger", apesar de seu afastamento. Pode-se sem exageros categorizar esse movimento intelectual como protofascista, na medida em que seu efeito ideológico geral consistiu em fornecer um tipo de preparação ideológico-espiritual para o triunfo Nacional-Socialista.

O próprio Schmitt jamais foi um membro ativo do movimento conservador revolucionário, cujos representantes mais conhecidos - Spengler, Jünger e van den Bruck - foram nomeados por Sontheimer (ainda que se pudesse acrescentar Hans Zehrer e Othmar Spann). Seria justo dizer que as principais diferenças entre Schmitt esse grupo influente de intelectuais de direita similares a ele concernem mais uma questão de forma do que de substância: diferentemente de Schmitt, cujos escritos em sua maior parte apareceram em publicações acadêmicas e profissionais, os conservadores revolucionários foram, todos eles, não-acadêmicos que fizeram nomes para si mesmos como Publizisten - isto é, como escritores políticos naquele mesmo mundo febril e caleidoscópico de Offentlichkeit de Weimar que era objeto de tanto desprezo em sua obra. Mas o status de Schmitt como companheiro de viagem em relação às principais publicações do movimento (tal como o influente Die Tat de Zehrer), atividades e círculos não obstante, suas profundas afinidades intelectuais com esse grupo de antirrepublicanos convictos são impossíveis de negar. Na verdade, na literatura secundário, tornou-se mais comum simplesmente incluí-lo como membro bona fide do grupo.

O hábito intelectual partilhado por Schmitt e pelos conservadores revolucionários e em grande medida de derivação nietzscheana. Ambos subscreviam ao veredito imoderado registrado por Nietzsche sobre a totalidade dos valores ocidentais herdados: aqueles valores eram essencialmente niilistas. Liberalismo, democracia, utilitarismo, individualismo e racionalismo eram as estruturas de crença características do Ocidente capitalista decadente; eles eram manifestações de uma Zivilisation superficial, que foi incapaz de corresponder à sublimidade da Kultur alemã. Em oposição a uma sociedade burguesa vista como estando em um estado avançado de decomposição, Schmitt e os conservadores revolucionários contrapuseram os ritos nietzscheanos de "niilismo ativo". Na visão de Nietzsche, o que quer que esteja caindo deve receber um empurrão final. Assim uma das oposições conceituais próprias do hábito conservador revolucionário era aquela entre o "herói" (ou "soldado") e o "burguês". Enquanto o herói prospera no risco, no perigo e na incerteza, a vida do burguês é devotada a cálculos pequenos de utilidade e segurança. Essa oposição conceitual ocuparia posição central no que seria talvez a publicação conservadora revolucionária mais influente de todo o período de Weimar, a obra jüngeriana de 1932, Der Arbeiter (O Trabalhador), onde ela assume a forma de um contraste entre "o trabalhador-soldado" e "o burguês". Se nos voltamos, por exemplo, para o que é considerada a maior obra de Schmitt da década de 20, O Conceito do Político, em que a famosa distinção "amigo-inimigo" é codificada como a raison d'être da política, é difícil ignorar as profundas ressonâncias conservadoras revolucionárias do argumento de Schmitt. De fato, pareceria que tais ressonâncias permeiam a tentativa de Schmitt de justificar a política primariamente em termos marciais; isto é, à luz da instância última da (para usar a própria terminologia de Schmitt) Ernstfall da batalha (Kampf) ou guerra.

Uma vez que a dimensão conservadora revolucionária do pensamento de Schmitt é trazida à luz, ficará mais claro que as continuidades em sua filosofia política pré- e pós-1933 são mais fortes do que as descontinuidades. Ainda assim o próprio caminho de desenvolvimento de Schmitt de arquiinimigo da democracia de Weimar a "nazista convicto" (Arendt) é mediado por uma série sucessiva de transformações intelectuais que atestam sua crescente radicalização política durante as décadas de 20 e 30. Ele segue uma rota que é ao mesmo tempo previsível e sui generis: previsível na medida em que foi uma rota tomada por toda uma geração de intelectuais nacionalistas e conservadores alemães durante o período entreguerras; sui generis, na medida em que permanece uma originalidade e perspicácia irredutíveis aos vários Zeitdiagnosen proferidos por Schmitt durante a década de 20, em comparação com as formulações às vezes banais e familiares de seus conservadores revolucionários contemporâneos.

A designação "conservador revolucionário" é intencionada para distinguir a virada radical tomada durante o período entreguerras pelos intelectuais alemães de direita em relação à posição de suas contrapartes "conservadores tradicionais", que ansiavam por uma restauração das glórias imaginadas dos Reichs alemães anteriores e geralmente enfatizavam a desejabilidade de um retorno a formas pré-modernas de ordem social (e.g., a Gemeinschaft de Tönnies) baseadas em considerações aristocráticas de posição e privilégio. Em oposição aos conservadores tradicionais, os conservadores revolucionários (e isso é verdadeiro para Jünger, van den Bruck e Schmitt), em suas reflexões da derrota alemã na Grande Guerra, concluíram que se Alemanha quisesse ser bem sucedida na próxima grande conflagração européia, soluções pré-modernas ou tradicionais não seriam suficientes. Ao invés, o que era necessário era "modernização", porém uma forma de modernização que fosse ao mesmo tempo compatível com os (ainda que mitologizados) valores tradicionais alemães de heroísmo, "vontade" (em oposição a "razão"), Kultur, e hierarquia. Em suma, o que era desejado era uma comunidade moderna. Como Jeffrey Herf enfatizou em seu informativo livro sobre o tema, quando se busca pelas origens ideológicas do Nacional-Socialismo, não é tanto a rejeição da modernidade pela Alemanha que está em questão quanto seu abraçar seletivo da modernidade. Assim o triunfo do Nacional-Socialismo, longe de ser caracterizado por um desdém da simpliciter da modernidade, estava marcado simultaneamente por uma assimilação da modernidade técnica e um repúdio da modernidade política ocidental: dos valores do liberalismo político conforme eles emergem das revoluções democráticas do século XVIII. Isso descreve a essência da "terceira via" ou Sonderweg alemã: o caminho especial da Alemanha à modernidade que não é nem ocidental, no sentido de Inglaterra e França, nem oriental, no sentido de Rússia ou pan-eslavismo.

Schmitt começou o seu na década de 10 como conservador tradicional, nomeadamente, um filósofo católico do Estado. Enquanto tal, seus primeiros escritos revolviam uma versão do autoritarismo político em que a idéia de um Estado forte era defendido a todo custo contra a ameaça de penetrações liberais. Em sua obra mais significativa da década, O Valor do Estado e a Significância do Indivíduo (1914), o equilíbrio entre os dois conceitos centrais, Estado e indivíduo, é riscado unilateralmente em favor do primeiro termo. Para Schmitt, o Estado, ao executar suas prerrogativas legislativas, não pode permitir qualquer oposição. A conclusão antiliberal e descompromissada que ele tira dessa observação é a de que "nenhum indivíduo pdoe ter plena autonomia dentro do Estado". Ou, como Schmitt expressa inequivocamente um pensamento similar em outro lugar da mesma obra: "O indivíduo" é meramente "um meio para a essência, o Estado é o que é importante". Assim, ainda que Schmitt demonstrasse pouca inclinação para o tipo de nacionalismo jingoísta tão prevalente entre seus companheiros acadêmicos alemães durante os anos de guerra, como Joseph Bendersky observou, "era precisamente na questão do autoritarismo vs. individualismo liberal que as opiniões de muitos católicos [como Schmitt] e as de conservadores não-católicos coincidiam".

Mas como outros conservadores alemães, foi a antipatia de Schmitt pelas formas de governo liberal-democratas, associada à reviravolta política da República de Weimar, que facilitou sua transformação de um conservador tradicional  a um conservador revolucionário. Com certeza, um relato completo das minúcias da "conversão" conservadora revolucionária de Schmitt demandaria um relato ano a ano de seu pensamento político durante o período de Weimar, durante o qual a produção intelectual de Schmitt foi extremamente prolífica (ele publicou virtualmente um livro por ano). Ao invés, em nome da concisão e da fidelidade ao leitmotif do "hábito conservador revolucionário", eu escolhi me concentrar em três aspectos fundamentais da transformação intelectual de Schmitt durante esse período: primeiro, suas simpatias com a crítica vitalista (lebensphilosophisch) do racionalismo moderno; segundo, sua filosofia da história durante esses anos; e terceiro, sua doutrina conservadora revolucionária do "Estado Total". Todos os três aspectos, ademais, estão integralmente relacionados.

A crítica vitalista do racionalismo iluminista é de origem nietzscheana. Em oposição à imagem filosófica tradicional do "homem" como animal rationalis, Nietzsche contrapõe sua visão da "vida como vontade de poer". No curso dessa "transvaloração de todos os valores", as até então marginalizadas forças da vida, vontade, afeto e paixão devem reclamar a posição de primazia que elas outrora desfrutaram antes do triunfo do "socratismo". É precisamente nesse espírito que Nietzsche recomenda que no futuro, nós filosofemos com nossos afetos ao invés de com conceitos,p ois na cultura do niilismo europeu que triunfou com o Iluminismo, "a essência da vida, sua vontade de poder, é ignorada", afirma Nietzsche; "deixa-se de lado a prioridade essencial das forças espontâneas, agressivas, expansivas e doadoras de forma que dão novas interpretações e direções".

Enquanto os componentes conservadores revolucionários da visão-de-mundo de Schmitt tem sido frequentemente notados, o papel central desempenhado pela "filosofia da vida" - acima de tudo, pelo conceito de crítica cultural própria da Liebensphilosophie - sobre seu pensamento político tem escapado à atenção da maioria dos críticos. Porém, uma compreensão plena do status de Schmitt como intelectual conservador radical é inseparável de uma apreciação de um aspecto até então negligenciado de sua obra.

De fato, influências determinadas da "filosofia da vida" - um movimento que alimentaria diretamente a moda da Existenzphilosophie da década de 20 (Heidegger, Jaspers e outros) - são realmente discerníveis nos escritos pré-Weimar de Schmitt. Assim, em outra de suas obrasp ublicadas, Lei e Juízo (1912), Schmitt está preocupado com demosntrar a impossibilidade de compreender a ordem legal em termos exclusivamente racionalistas, isto é, como um sistema completo autossuficiente de normais legais ao estilo do positivismo legal. É sobre essa base que Schmitt afirma que em um caso particular não se pode alcançar a decisão correta tão somente por um processo de dedução ou generalização a partir de precedentes ou normais legais. Ao invés, ele afirma, há sempre um momento de particularidade irredutível para cada caso que desafia a subsunção sob princípios gerais. É precisamente esse aspecto do juízo legal que Schmitt considera mais interessante e significativo. Ele prossegue cunhando uma frase para essa dimensão "extralegal" que prova um aspecto inescapável de toda tomada de decisão legal propriamente dita: o momento da "indiferença concreta", a dimensão de adjudicação que transcende a norma legal previamente estabelecida. Em essência, o momento de "indiferença concreta" representa para Schmitt um tipo de substrato vital, um elemento de "pura vida", que eternamente se opõe ao formalismo de leis enquanto tal. Assim no coração da sociedade burguesa - seu sistema legal - se encontra um elemento de particularidade existencial que desafia a coerência do silogismo racionalista ou razão formal.

Esse relato de indiferença concreta é uma questão de mais do que interesse passageiro ou acadêmico na medida em que prova um precursor crucial da posterior teoria decisionista da soberania de Schmitt, por sua desvalorização das normais legais existentes como base para tomada de decisões judiciais, a categoria da indiferença concreta aponta para a natureza imperativa da decisão judicial em si como base autossuficiente e irredutível de adjudicação. A dimensão vitalista da filosofia do direito inicial de Schmitt se trai em sua denigração constante do normativismo legal - pois as normas são um produto do intelectualismo árido (Intelligenz) e, enquanto tal, hostil à vida (lebensfeindlich) - e a crença concomitante de que apenas a decisão é capaz de estabelecer a ponte entre a abstração da lei e a plenitude da vida.

As simpatias vitalistas incipientes da obra de Schmitt alcançaram plenitude em seus escritos da década de 20. Aqui, o texto fundamental é Teologia Política (1922), em que Schmitt formula sua teoria decisionista da política, ou, como ele ressalta na muito citada primeira fase da obra: "Soberano é aquele que decide o estado de exceção [Ausnahmezustand]".

Seria tentador afirmar a partir dessa definição inicial, porém lapidar, de soberania, pode-se deduzir a totalidade do pensamento político maduro de Schmitt, pois ela contém o que conhecemos como sendo as duas palavras-chave de sua filosofia política durante esses anos: decisão e exceção. Ambas no léxico de Schmitt estão longe de possuírem valor neutro ou serem meramente conceitos descritivos. Ao invés, ellas ambas possuem valor inequivocamente positivo na economia de seu pensamento. Assim um dos traços da filosofia política de Schmitt durante aos anos de Weimar será uma privilegiação do Ausnahmezustand, ou estado de exceção, vis-à-vis normalidade política.

É minha posição de que a celebração do estado de exceção por Schmitt acima de condições de normalidade política - que ele essencialmente equipara com o positivismo legal e o "parlamentarismo" - tem sua base na crítica vitalista do racionalismo iluminista. Em sua justificação inicial do Ausnahmezustand na Teologia Política, Schmitt não deixa dúvidas no que concerne o pedigree histórico de tais conceitos. Assim seguindo a conhecida definição de soberania citada previamente, ele imediatamente sublinha seu status como um "conceito limítrofe" - Grenzbegriff, um conceito "pertencendo à esfera mais exterior". É precisamente essa fascinação com situações limítrofes ou extremas (Grenzsituationen-K. Jaspers - aqueles momentos únicos de perigo existencial que se tornam campo de provação da "autenticidade" individual) - que caracteriza a crítica avassaladora da "quotidianidade" burguesa pela Lebensphilosophie. Daí na Grenzsituationen, o Dasein vislumbra a transcendência e é assim transformado de possível em Existenz real. De modo paralelo, Schmitt, ao conceder primazia ao "estado de exceção" em oposição à normalidade política, tenta investir a situação emergencial de um significado superior, existencial.

Segundo a lógica interna desse esquema conceitual, o "estado de exceção" se torna a base para uma política de autenticidade. Em contraste com as condições de normalidade política, que representam o reino do "mediano", do "medíocre", e do "quotidiano", o estado de exceção se prova capaz de reincorporar uma dimensão de heroísmo e grandeza que é extremamente ausente na conduta rotinizada e burguesa da vida política.

Consequentemente, a superioridade do Estado como o árbitro decisionista final sobre a situação de emergência é uma questão que, aos olhos de Schmitt, não precisa ser discutida, pois segundo ele, "cada interpretação racionalista falsifica a imediatidade da vida". Ao invés, em sua opinião, o Estado representa uma verdade existencial fundamental, irrefragável, como o faz a categoria "vida" na filosofia de Nietzsche, ou, como Schmitt afirma com fibra característica na Teologia Política, "A existência do Estado é prova indubitável sobre sua superioridade sobre a validade da norma legal". Assim, "a decisão sobre o estado de exceção se torna instantaneamente independente de substanciação argumentativa e recebe valor autônomo".

Mas como Franz Neumann observa em Behemoth, dada a falta de coerência da ideologia Nacional-Socialista, as razões fornecidas para a prática totalitária eram muitas vezes fundadas especificamente em termos vitalistas ou existenciais. Nas palavras de Neumann, "o que sobra como justificativa para o Reich? Não o racismo, nem a idéia de Sacro Império Romano, e certamente não qualquer baboseira como soberania popular ou autodeterminação. Apenas resta o próprio Reich. Ele é sua própria justificativa. As raízes filosóficas do argumento devem ser encontradas na filosofia existencial de Heidegger. Transferido ao reino da política, o existencialismo afirma que poder e força são verdadeiros: o poder é uma base teórica suficiente para mais poder".