10/11/2011

Agir no Tempo

por Ferrarinus

Partindo do princípio de que o tempo é para nós, mortais, um agora que se desloca, de modo que tanto o passado como o futuro existem como “oquejáfoi” e “oqueserá”, ou seja, “oquenãoéagora”, “o que inexiste agora”, temos apenas a certeza de viver o presente. Deste dia de hoje, por exemplo: as horas passadas se foram e são irrecuperáveis, as que virão ainda não chegaram e podem não chegar, afinal existe a morte. As horas passadas não voltam, as futuras não chegaram, não podemos ter ao meio-dia o nascer do sol outra vez, nem tampouco o por do sol, é impossível no presente ter o passado e o futuro. Nossas vidas são planos que nunca se completam. Que raramente se completam. Enfim, estamos no tempo, especificamente no presente, no agora. Disto surge um problema: como agir no presente com alguma eficácia, tratando passado e futuro corretamente?

É preciso reconhecer que, uma vez situado na linha do tempo, exatamente no presente, o homem deve estar de costas para o passado e de frente para o futuro. Isto não corresponde a dizer que se deve desprezar o passado, renegá-lo, pelo contrário, estando com as costas viradas para ele se assume a consciência e a tarefa de dar a ele seguimento, pois é dele, do passado, que tudo parte. O homem que deixa o passado no seu devido lugar e marcha inexorável para dentro do futuro, abrindo-o no presente como se desbravasse uma selva, é o homem que honra o seu passado e não hesita em partir dele para realizar a sua vida. Apenas o homem pervertido e mal intencionado se volta do presente para o passado, pois todos aqueles que subvertem o mundo se empenham em deturpar a História dos povos e das nações. Em nome de um futuro sonhado sem moral os degenerados se viram de frente para o passado para questioná-lo, pervertê-lo, enquanto o homem que honra o passado se volta para o futuro, para continuá-lo. Continuar uma obra é a maior honra que se pode dar à mesma, e o homem que honra o passado o continua no futuro. Mas daqui nasce um erro sutil que, porém, emperra toda ação regenerativa no mundo: o romantismo, o fetichismo com o passado. O fetiche é uma perversão. Tanto quanto o sadismo destes homens que se voltam para o passado para violentá-lo, os fetichistas românticos são o outro lado da moeda, são os masoquistas que se violentam a si próprios, que se negam o direito de existir na sua própria época, e que negam ao próprio objeto de adoração a oportunidade de prosseguir através do tempo. Necrófilos, necrófagos. É por isso que sofrem com o mundo em que vivem, que se deprimem e se revoltam pateticamente, por que vivem em um mundo de sonhos, ou melhor, em um mundo de histeria, próprio dos pervertidos. Eles se armam para enfrentar Stalin e suas armas se mostram inúteis quando confrontam a realidade de que Stalin está morto e agora precisam enfrentar Deleuze, Derrida, etc.

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial temos visto uma sociedade de anônimos, o que evidencia a brutal massificação do homem. Curiosamente, nunca foi tão fácil ser famoso. Há um abismo, entretanto, entre ser famoso e não ser um anônimo histórico. A fama atual é fugaz, conveniente e vazia. Hoje existem milhões de escritores, mas nenhum Shakespeare, Cervantes, Dostoievski. Somos menos capazes de suscitar o aparecimento de um gênio? O problema não é humano, mas a posição do humano no tempo. Tudo o que se torna famoso hoje em dia é o que pretende romper com a tradição, portanto é o que está voltado para o passado com o intuito de destruí-lo. Toda a defesa do passado que parte destes românticos fetichistas é igualmente efêmera, pois está igualmente voltada para os símbolos e nomenclaturas próprias de uma determinada época. Enquanto todos esses iludidos gastam o seu “agora que se desloca” disputando a respeito do que não pode retornar, o presente continua rumando para o futuro e o futuro os atropelará a todos, soterrando-os no anonimato, na banalidade, no esquecimento. Pior: os que se empenham na subversão com interesses verdadeiramente maus, os que lucram de verdade com toda corrupção não estão voltados para o passado, eles estão construindo o futuro, e passando despercebidos.

Urge que nos voltemos para o futuro. Não somos advogados dos que já morreram, mas dos que virão. Quem nunca ouviu um velho dizer que a verdade, cedo ou tarde, vem à tona? Por mais terra que joguem sobre o passado, ele continuará sempre no seu devido lugar, e quando uma geração não tiver a forca no pescoço, como nós temos, ela cuidará de compreender tudo o que se passou. Uma coisa é o dever moral de rever as mentiras e combatê-las, outra é procurar rever a história com o interesse em repeti-la. O que não podemos é ficar no jogo “eles jogam uma pá de terra e nós tiramos uma pá de terra” enquanto os interessados se voltam para o futuro para dar um nó cego na forca que temos no pescoço. Não estarão confundindo a ideia de “pensar pela História”? Pensar pela História é pensar pelos exemplos da História: “o que a História nos ensina sobre isso? Deste ensinamento, o que podemos aplicar agora, no nosso problema atual?” Há fetichistas que gostam de sapatos, assim também os fetichistas históricos parecem desejar a oportunidade de calçar os mesmos sapatos e trilhar o mesmo caminho que seus heróis calçaram e trilharam.

O espiritual também fenece quando mal posicionado no tempo. Os ateus (onde se incluem todos os pseudo-religiosos), quando não estão combatendo o passado, que para eles fede a religião, estão acocorados no presente histórico como parasitas chupando o sangue de seus hospedeiros. Os piolhos que sugam da cabeça racional, científica da humanidade, que procura apenas compreender o mundo e os homens para melhor utilizá-los. O ateísmo, já disse Leonel Franca, é sempre sinal da decadência de uma sociedade, e é sinal da desordem temporal: não há ateu com consciência de dever histórico, isto é, vir do passado no presente para fazer o futuro, porque isso requer valores morais concretos. Se algum ateu é assim, então ele não é um ateu, apenas não compreende a própria fé. São os fetichistas da religião tão decadentes como os ateus e os masoquistas históricos. A religião não está como a ciência, a serviço do homem, mas o homem está para Deus e a religião age como um meio. O caminho é um só, e é dever do homem espiritual combater os atalhos propostos por outros homens. E este combate acontece na ordem do tempo, que é onde todos existimos. Os conservadores dão as costas ao futuro e por isso estão condenados a se tornarem passado, e sua luta, por maior que tenha sido, contribuirá mais para seus inimigos que para aquilo em que acreditam. Com isso se diz: não se pode, voltado para o passado, adorando fatos, personalidades, acontecimentos históricos, o “agoraquejá se foi”, propor algo para o futuro porque não temos olhos nas nucas. O homem que se nega a viver a sua época como ela exige que ele a viva será, na melhor das hipóteses, um homem de teoria, e a maior parte das teorias (os fetichistas históricos deveriam saber) morre ao ser posta em prática. Todas as teorias que sobrevivem são aquelas que nascem da prática, comprovadas pela eficiência prática.

Para finalizar. Diz Josef Pieper que o ato de filosofar, o ato religioso, o sentimento artístico, o abalo erótico e a experiência da morte são atitudes que, quando genuínas, permitem ao homem romper com a vida ordinária, banal, massificada. Mas, diz também que “pior que o emudecimento e o desaparecimento é a transformação em formas espúrias e mentirosas”, isto é, pior que já não ter meios de transcender é ter pseudo-meios. Uma pseudo-filosofia, que ao invés de propor meios de elevação, aliene o homem em questões mundanas e irrelevantes, uma pseudo-religião, que ao invés de serenar os anseios espirituais do homem e confortá-lo para a dura batalha da vida o acovarde e o torne mesquinho, uma pseudo-arte, que ao invés de elevar seu espírito e transmitir sentimentos e valores avilte a beleza e a nobreza, um pseudo-sexo, que ao invés de unir um homem e uma mulher para a consumação do amor e a transmissão do sangue e da vida seja apenas prazer, animalidade e baixeza, enfim, uma morte que seja encarada como castigo, como sofrimento e como crueldade, e não como o único fim possível para a vida e a grande oportunidade de se libertar da carne. Napoleão Bonaparte disse “só está destruído o que é substituído”. O fetichista romântico substitui a postura correta de defesa do passado como base para que o futuro seja planejado no presente por uma postura semelhante ao que em psiquiatria se denomina co-dependência, isto é, um sujeito que se torna dependente de outro problemático, que necessita do papel de anjo da guarda que vela pelo outro. Tão logo o outro se cure o co-dependente se vê enrascado, pois ele dependia do outro enquanto problemático. O romântico igualmente depende do passado histórico, sobretudo o difamado, porque sem esse passado ele não tem sentido algum de ser. Suponhamos que ele consiga o que quer e que consiga reviver seu passado: essa será sua morte, porque a mentalidade que ele procura reviver o repelirá como moderno e decadente. Bem, uma vez que o homem que luta por regenerar precisa estar de costas para o passado, assim como todos os grandes homens do passado estiveram, aquele que estiver de costas para o futuro não estará continuando coisa alguma do passado, ele estará, no presente, substituindo valores atemporais necessários para se construir um futuro melhor por ideias obsoletas, úteis em tempos idos, demasiado diferentes, ou melhor, por práxis políticas que não servem mais. Resumindo: eles se importam mais com a carruagem que com o passageiro. Não é a carruagem que interessa, o meio como as idéias e os valores acontecem, mas o passageiro, as próprias idéias e os próprios valores. No passado eles vieram de cavalo, depois de carroça, vieram de trem, de avião, agora eles virão de internet. Por que não? Querer fazê-los vir de carroça em pleno século XXI, além de ridículo, é uma estupidez sem tamanho. O que resulta desse fetichismo? Duas coisas: o fornecimento de matéria para discussões absurdas, despropositadas, que só fazem permitir ao tempo correr sem que nada se realize em concreto, fornecendo também lenha para a locomotiva dos interessados, e o aviltamento do próprio passado, que ao invés de ser honrado e continuado no progresso está sendo embalsamado permanecendo no presente como uma múmia, um estorvo. Grande injustiça com os heróis do passado, tornar seus exemplos em estorvos, a História em letra morta, por uma perversão fetichista e romântica.

Colhi algumas frases da internet para ilustrar a idéia geral:

"A carruagem do passado não nos leva longe" Gorki

"Não viva no passado, não sonhe com o futuro, concentre a mente no momento presente" Buda

"O futuro tormenta-nos e o passado retém-nos. É por isso que o presente nos foge." Flaubert

"O passado é lição para refletir, não para repetir." Mário de Andrade

"Onde não estamos é que estamos bem. Já não estamos no passado, e então ele parece-nos belíssimo". Tchéckov

"Quando afirmamos que o passado foi melhor, condenamos o futuro, sem conhecê-lo." Francisco de Quevedo

"Todos nós vivemos do passado, e pelo passado morremos." Johan Wolfgang Von Goethe

"Viver no passado é uma ocupação tola e solitária; olhar para trás tensiona os músculos do pescoço, e faz com que você se encontre com pessoas que não estão no seu caminho." Edna Ferber

O passado e o futuro parecem-nos sempre melhores; o presente, sempre pior.” Shakespeare

Ser subdesenvolvido não é "não ter futuro"; é nunca estar no presente.” Arnaldo Jabor

As pessoas felizes lembram o passado com gratidão, alegram-se com o presente e encaram o futuro sem medo.” Epicuro

Se queres conhecer o passado, examina o presente que é o resultado; se queres conhecer o futuro, examina o presente que é a causa.” Confúcio

Lamentar uma dor passada, no presente, é criar outra dor e sofrer novamente.” Shakespeare

O passado serve para evidenciar as nossas falhas e dar-nos indicações para o progresso do futuro.” Henry Ford

Não se pode planejar o futuro pelo passado.” Edmund Burke

As boas ideias não têm idade, apenas têm futuro.” Robert Mallet


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Fonte: Ferrarínia