09/12/2013

Geydar Dzhemal - A Sociedade e o Tempo: O Mecanismo Global da Alienação

por Geydar Dzhemal



Sociedade Atual: Ausência dos Beneficiários Visíveis no Espaço Social Aberto

A absoluta maioria dos homens se encontra hoje sob uma duríssima pressão por parte da sociedade atual, que eles percebem como a pressão do meio social, com seus desafios diários. Hoje, essa pressão se estende amplamente, tomando diversas formas. Antes, nos tempos burgueses anteriores à chegada do lumpen global e da lumpenização e burocratização das assim chamadas "regras de jogo", o dinheiro em grande medida ajudava a nos protegermos das desgraças externas: a gente rica estava mais ou menos protegida dessa pressão, tinha algumas possibilidades a mais. Porém hoje a situação mudou radicalmente: o dinheiro deixa de possuir sua força política independente, sua própria autoridade (se é que tal autoridade não foi um mito desde o princípio, relacionado com o significado oculto do ouro). Mais ainda, está mudando a relação entre as pessoas e sua propriedade, particularmente, entre as pessoas e seu dinheiro. Hoje o Estado enredou até tal ponto todos os aspectos das relações humanas, que inclusive na sociedade liberal capitalista, que proclama os valores liberais capitalistas, ninguém pode afirmar com toda segurança que possui seus bens, seu dinheiro de uma maneira confortável, legal. Chega, os inspetores financeiros, os inspetores de renda, a polícia fiscal; o dinheiro que passa de uma conta a outra, se segue, se registra. Devido a que o campo do direito se tornou instável e virtual, em qualquer momento e, não importa contra quem, se pode inventar uma acusação e com o mesmo êxito demonstrar que a acusação não se sustenta, ou, ao contrário, demonstrar que se trata de um grave delito - tudo depende da conjuntura política. Assim se pode retirar dinheiro de uma pessoa e enfiá-la no cárcere.

Jodorkovski (oligarca russo encarcerado) foi um exemplo periférico do que realmente está ocorrendo no mundo inteiro. Nos EUA, sobre os muitos que creem, por ignorância ou ingenuidade, que aí existem outro tipo de relações entre o homem e seu dinheiro, o homem e o Estado, aos homens de muito maior peso que Jodorkovski lhes encerravam nos manicômios, enquanto estes se desviavam "um passo à esquerda, um passo à direita". É pelo que pensar que atualmente o dinheiro constitui uma capa defensora frente ao mundo exterior é um erro. Mais exatamente representa uma carga acrescentada e uma preocupação para aquele a quem este dinheiro se adjudica.

Suponhamos que a alguém lhe "comprem" uma propriedade de um valor de mil milhões de dólares. Essa pessoa em certo sentido em seguida se converte em perseguida: tem a enorme responsabilidade de pagamentos ao Estado, a todo tipo de fundos benéficos, tem que pagar continuamente ao sistema, que lhe chantageia utilizando inclusive aos paparazzi, que se metem em sua vida privada. Como resultado tem que viver enclausurado, rodeado de empregados contratados, protegido por guarda-costas, etc. Sua vida se converte em uma existência bastante problemática.

Ademais, a vida do homem rico atual está plena de todo tipo de deveres: deve se vestir de uma maneira determinada, comer determinada comida, passar o tempo livre de uma maneira determinada, se encontrar com determinadas pessoas. Para comparar, o homem rico do século XVIII ou XIX era um autêntico déspota, amo todo-poderoso, ao qual os familiares obedeciam sem hesitar, os servos baixavam as vozes ante sua presença, ante quem o prefeito da cidade se inclinava na rua. Enquanto que o homem rico de agora não é mais que um palhaço, um ator, que cumpre um papel estritamente definido pela sociedade.

Pudera parecer que as pessoas que não possuem semelhante propriedade, sobre as quais não pesa tamanha responsabilidade, são mais livres, seguramente essas pessoas pensam que são livres. Funcionários, aposentados: quem pode ser mais livre? Porém, em realidade, também eles estão atados por uma multidão de vínculos invisíveis, veste o "papagaio" social invisível que dificulta seus movimentos, também eles tem um programa, relacionado com sua autoidentificação. O aposentado, se é um aposentado rico que pertence ao "bilhão dourado" (assim batizara na Rússia ao bilhão de seres humanos que, segundo Fukuyama, tem nível suficiente de desenvolvimento para seguir adiante no "barco do progresso", o resto da humanidade fica excluída) está obrigado a viajar a Chipre duas vezes por ano, a passear na orla com bermuda e câmera fotográfica, tem determinadas relações com seus netos, com outros aposentados, com os fundos de pensão, etc.

Está claro que seu tempo é de alguma maneira um pouco mais livre: tem menos contatos, menos responsabilidades, menos desafios imediatos, porém, por outro lado, paga porque seu tempo está vazio. O aposentado atual é um cadáver andante, está marginalizado e expulso da vida. Sim, a sociedade do bem-estar social não lhe permite morrer, mais ainda, lhe paga um enorme imposto, devido ao qual o aposentado de classe média atual é considerado hoje quase como o principal parasita - a classe dirigente reorienta a indignação da classe média para os aposentados que, presumidamente, vivem à custa dos que trabalham. Poderia parecer que esse aposentado vive para desfrutar. Porém se olhássemos no interior de sua existência, veríamos que o aposentado é um cadáver social, cada segundo de sua vida está desprovido de sentido. Não tem objetivo, não tem missão, não tem tarefa, não influencia em nada, é um homem virtual. Passeia pelas beiras das praias passando o tempo até o crematório.

Se lançamos a vista aos jovens desempregados, na melhor das hipóteses alguém poderia invejar esses capitães dos descampados, que se divertem golpeando uma lata vazia ao invés da bola, pensando em como forçar o fechamento de um quiosque, ou em conseguir alguma droga para passar o momento. Porém, sua existência é todavia mais terrível, é a mais terrível de todas, porque as pessoas jovens ativas possuem um gigantesco potencial temporal e energético, potencial do tempo, carga de vontade, de energia biológica, cujo sentido lhe é roubado.

Foram colocados na mesma situação que aos aposentados, são cadáveres caminhantes, porém jovens. Se ao aposentado restam poucos anos para a tumba, para eles, desde a perspectiva da juventude, é como se fosse aberta a eternidade inteira. Quantos anos terão que seguir golpeando essa lata nesses terríveis descampados entre os dentes de concreto dos arranhacéus em construção? Ou as grandes casas, protegidas por arame farpado e muros de vegetação, de modo que não só não te podes aproximar, senão que nem mesmo pode lançar um olhar por trás desses altos muros.

Quantos anos? Desde a ótica de um rapaz de dezessete anos é como se toda a eternidade em seu sem-sentido vazio se lançasse sobre ele. O horror é tal, que a única coisa que pode fazer para corrigir a situação, é pegar uma faca ou roubar uma pistola e sair para ganhar a vida, criar um brutal acontecimento contra o sistema, levar a cabo uma ação brusca, que de alguma maneira, ainda que seja aparente, detenha essa eternidade e, inclusive através de sua morte, de seu sacrifício, devolva algum sentido a esse vegetar vazio, sem sentido.

Assim é o contorno da sociedade atual. É o contorno de uma sociedade em que permanecem presas de uma estranha escravidão tanto o oligarca, como o aposentado, ou o rapaz desempregado dos subúrbios, o mesmo que o policial que está perseguindo esse rapaz desempregado. Nessa sociedade parece que não estão os que recebem os dividendos. Todos pagam, porém em que bolso vai parar tudo?

Três Modelos Sociais: Tribal, Tradicional em forma de pirâmide e Atual

A sociedade atual representa o quadro em que o esquema da sociedade tradicional se voltou a embaralhar e foi reestruturado de uma determinada maneira. Existem dois tipos principais de sociedade: sociedade tradicional e sociedade moderna. Se bem existem diferentes variantes, há diferentes sociedades tradicionais. A sociedade tradicional da China medieval, a primeira vista, não se parece à sociedade tradicional da Europa medieval; e ambas não se parecem ao Califado Abássida, ou à Índia Mogol.

Não obstante, se olhamos desde o ponto de vista da estrutura, descobriremos que toda a variedade das sociedades tradicionais se reduz ao mesmo esquema.

Na sociedade moderna, que é como chamamos o espaço social ocupado pelos bilhões de habitantes que vivem nos assim chamados países civilizados, quase todos os elementos do esquema tradicional foram recolocados.É como se pegássemos o esqueleto humano e mudássemos de posição seus ossos - por exemplo, a caixa torácica substitui a pélvis, a pélvis sobe, os braços mudam de posição com as pernas - esse é o modelo da sociedade contemporânea. Só a cabeça permanece em seu lugar, a cabeça segue acima como estava. O resto está ligeiramente mudado.

Existe um modelo a mais de existência social, é o modelo da tribo primitiva, da que se diz que é a vida tribal, mas que não é uma sociedade, nem no sentido tradicional, nem no atual.

O que é o modelo tribal? É fácil de imaginar lembrando o monte de filmes sobre as selvas amazônicas ou similares. Imaginem um quadro esquematizado: jovens guerreiros, o chefe da tribo, os anciãos, acima está o xamã. Tudo está à vista, tudo está aqui: o xamã está à mão, é possível chamá-lo, os anciãos estão sentados, falando, o chefe trabalha com os jovens guerreiros. Os jovens guerreiros estão sempre dispostos, olham com confiança, com brilho nos olhos, assim que é possível guiá-los, dirigi-los, eles lhe seguirão, dispararão com seus arcos, arremessarão as lanças. O chefe recebe instruções dos sábios anciãos. Melhor dito, se senta com eles, estão discutindo, porém a opinião coletiva do conselho de anciãos é a que manda. Porém os anciãos são o corpo, seu espírito é o xamã, a quem se pode convidar em alguns casos extraordinários, ele entra em transe e vê o que há que fazer. Todo o esquema está aqui.

Ocultação do Sacerdote à Diferença do Xamã Tribal

Tanto a sociedade tradicional como a atual tem a mesma cúspide: instituição sacerdotal desenvolvida, que se encontra fora da autêntica intercomunicação com o espaço social. A diferença principal consiste em que o "xamã" - ou mais exatamente a instituição sacerdotal corporativa em sua função própria fechada - não é visível. Face ao público só ensina sua parte social, mais representativa, separada dos assuntos verdadeiramente "xamânicos". Claro que podemos contemplar como o Papa de Roma uma vez ao ano vestido de branco saúda com a mão um milhão de peregrinos que se ajoelham; em trinta idiomas pronuncia alguma fórmula da paz e, sem dúvida, é o "xamã". Porém não o vemos aqui em sua função realmente "xamânica": observar a verdade do mais além e levá-la aos anciãos, que formularão o objetivo político que será apresentado ao chefe. Vemos as funções de sua autoridade estritamente representativa. O ancião vestido de branco forma o contorno de uma sacralidade nebulosa-lunar, que desperta em milhões de corações o desejo difuso da verdade e da beleza, do bem e do significado, graças aos quais a vida a seus olhos cobra algum sentido e, talvez, vale a pena arrastar seu peso... Nem tudo está tão mal, existe a verdade, o resplendor do bem nesse mundo, concentrado nesse belo ancião, portador do bem e da bondade, ao qual contemplamos de longe vestido de branco, que nos saúda desde as esferas superiores, nos acena com a mão. "Assim que a vida tem sentido", pensam milhões de pessoas, dos quais, na melhor das hipóteses, se não tivessem a este ancião diante de si,  dez por cento se suicidaria e o resto, por exemplo, se poria a quebrar tudo. Unicamente lhes detém uma coisa: como vou dar rédeas soltas a meu destrutivo "Id" e me converter em mau, se aqui na pessoa desse ancião tenho o "Superego" encarnado?

Assim que todos nós, pegos pelas mãos, devemos nos comportar como cidadãos exemplares da grande família humana.

De modo que o xamã aparece muito raramente perante a sociedade civilizada, o xamã é coletivo, muito complexo, ao qual é impossível ver e testemunhar em sua plenitude ontológica.

Por trás desse ancião estão as hierarquias de pessoas invisíveis (as quais, de modo geral, já não são pessoas) diretamente conectadas com a verdade, desconhecida para os seres humanos simples. Os "xamãs" a veem, a conhecem, eles não falam com gente simples, eles tratam exclusivamente com os senhores da vida.

Os sacerdotes falam com aqueles - todavia não os nomeamos - que são os principais beneficiários dos dividendos dessa sociedade.

Os três tipos de sociedade: a tribo arcaica, a pirâmide social tradicional, e por último, a sociedade atual de hierarquia complexa com seu parlamento e sua democracia - são todas instrumentalizações do poder de "Grande Ser". Sob este termo entendemos o modelo arquetípico da humanidade coletiva, cuja manutenção e realização corre a cargo da superelite, que se encontra em comunicação direta com o estamento sacerdotal que representa ao "Grande Ser" em nosso mundo real.

A Realidade do "Grande Ser" e o Poder das Superelites

O que é o poder? Do poder se dizem coisas muito distintas. Pelo geral, se diz que o poder é quando eu te ordeno e tu obedeces. Quer dizer que o poder vem do senhor em relação a seu servo ou seu escravo. Alguém deve obedecer e alguém dá a ordem. Porém tenho uma pergunta: essa descrição do poder me parece demasiado superficial, porque o poder constitui um estado interior fundamental, existencial. Darei um exemplo. Suponhamos que um homem na rua tenha sido rodeado por um par de delinquentes armados com canivetes, eles lhe ordenam algo e sob a ameaça para sua vida está obrigado a fazer algo. Nesse caso se diz: está em poder dos delinquentes. Certamente, muitos filósofos, incluído Hegel, diziam que as relações entre o amo e o escravo são de tal índole, que o escravo se vê obrigado a trabalhar para o senhor com a ameaça de sua vida. Estou convencido de que se trata de uma séria simplificação da situação. Quando me apontam com uma pistola ou me põem o canivete no pescoço, e me dizem: me dá a carteira - sim, claro, entregarei minha carteira, talvez, porém não considero que me encontro em poder desse rapaz e que ele tem o poder. Porque me colocou em uma situação puramente externa que agora é assim, e amanhã ele na melhor das hipóteses se distrai e lhe tomo o canivete, ou ele ouve passos, solta o canivete e sai correndo.

Se consideramos o poder por esse lado, não me convence a situação em que alguém me pode obrigar externamente a fazer algo. Por exemplo, acaso se pode dizer que o cliente no restaurante tem poder sobre o camareiro? Ele ordena: traga-isso, traga-me aquilo. A função do camareiro é tomar nota, trazer o pedido e cobrar. Porém acaso se pode dizer que o cliente exerce seu poder sobre o camareiro? Se o poder se reduz a isso, é simplesmente ridículo. Porém o camareiro traz os pedidos. Alguns vão ao restaurante para experimentar a sensação do poder. Entendem o poder de tal maneira que lhes basta com a capacidade de ordenar ao camareiro para sentir-se no ápice da vida, como senhores. Mas isso é ridículo!

O que é o poder? O poder, em seu sentido superior, e desde o ponto de vista arquetípico da nobreza tradicional, é um estado de independência, autossuficiência, plenipotência e liberdade, em que todos os possíveis estados estão unidos. Quer dizer que se trata do ser íntegro, autossuficiente e livre, que encontra em si mesmo seu fundamento, seu sentido e sua idéia. Assim era o poder para Platão, para Sócrates e também para Nietzsche, que, seguramente, foi o filósofo moderno mais sério a expressar o problema da vontade e o problema do projeto da elite atual. Projeto que essa elite pensa realizar a qualquer preço.

Nietzsche é o filósofo mais agudo dos que se ocuparam do aspecto existencial do poder. Ele acreditava que Goethe, figura chave da cultura alemã, foi quem mais se aproximou ao ideal do super-homem, cujo estado interior encarna esse estado de poder. Ademais, César Bórgia se parecia em parte ao super-homem, como um pouco Napoleão e, provavelmente, César. Não obstante, todos eles eram super-homens aproximados, incompletos, e o autêntico super-homem foi precisamente Goethe. Goethe uniu em si a razão e os sentimentos, se elevou sobre eles, fundiu em sua personalidade única todos os aspectos, convertendo-se em seu dono. Venceu a seu ego, a seu "eu" inferior elemental, se elevou por cima das paixões, controlou o transcorrer de seu pensamento, uniu todos os elementos de seu ser e permaneceu absorvido em uma luminosa e bem-aventurada autossuficiência, como se estivesse situado fora do tempo. E, segundo Nietzsche, assim é o super-homem.

Se nos fixamos a quem representa Goethe na filosofia nietzscheana, se paramos para pensar na mensagem de Goethe, no que expressa sua doutrina, sua cultura, se nos fixamos também em "Fausto", a obra mais poderosa e profunda escrita por Goethe, compreenderemos que se trata do estado do "Grande Ser" (como diziam os iluminados) ou do "Ser Supremo" (em expressão dos jacobinos), que na tradução monoteísta islâmica se denomina Iblís. Iblís, também conhecido como Lúcifer, Ahura Mazda, Apolo, segundo o monoteísmo é o ser criado primeiro, da protoenergia primária ("fogo"). Se encontra em oposição absoluta em relação ao "Deus dos profetas" - centro de subjetividade inapreensível situado fora do ontológico, cujo agente exterior e representante, segundo a teologia monoteísta, é o homem físico. O estado de Iblís era o estado ideal em que Iblís permanecia, até que foi arrojado por desobedecer ao Altíssimo quando se negou a se inclinar perante Adão. Como o primeiro ser, que unia em si a luz e o calor - dois atributos principais do fogo primordial, Iblís se sentia em total plenitude, unindo todos os possíveis estados em perfeito equilíbrios, que para a metafísica tradicional representa a "liberdade".

O super-homem como imagem do ser supremo, como um ideal, que Nietzsche definiu como o objetivo da nova humanidade ou, mais exatamente, dos autênticos homens, é a projeção de Iblís sobre a terra. E é no que em perspectiva óptima querem se converter os senhores da vida, aqueles seres que estão acima da sociedade. Porém entre eles e Iblís existe um intermediário, já que Iblís é um ser sobrenatural. Iblís é o ser que, seguindo a indicação do Altíssimo, se encontra "na frente, atrás, à direita e à esquerda" e em muito supera ao homem por suas possibilidades "físicas" e "sutis". O contato direto com ele ou a orientação à ele são extremamente difíceis, por isso e com esse fim existem os intermediários - xamãs ou sacerdotes. Todos os sacerdotes e xamãs, independentemente das confissões, independentemente do método empregado para a intermediação, independentemente de suas declarações, se orientam precisamente a Iblís, que representa o ponto universal de intermediação em que se unem todas as estruturas e manifestações que se possam realizar. O homem não tem forma, porque pode adotar qualquer forma. Pode se identificar como queira. Seu corpo obviamente tem forma, porém é a forma inferior, física, que nesse caso não tem importância. Falamos da verdadeira forma, quando o homem crê pertencer a uma determinada raça, estamento, casta, status hierárquico dentro da pirâmide, etc. Todos os modelos que elege para si são formas que, em realidade, já estão contidas em sua natureza, e sob a influência de tais ou quais condições já pode se posicionar como tal ou qual. Chamamos forma àquilo que o homem se dá como ser espiritual, quer dizer os estados que pode viver e adquirir.

De modo que os sacerdotes veem a Iblís como o ser global total, que possui as possibilidades e o controle sobre todas as formas e todos os estados. Este conhecimento e essa postura dos sacerdotes finca suas raízes na distância dos tempos, arranca da Idade de Ouro e, após sofrer diferentes modificações, chega até nossos dias. Inclusive subsiste instalada profundamente a nível do inconsciente coletivo da casta sacerdotal. Ademais, a casta sacerdotal possui aptidões e capacidades que superam em muito as possibilidades do homem corrente. Essa gente é a dona de seu tempo e tem o talento ou a aptidão para a contemplação, uma capacidade única, da que está desprovida a maioria dos humanos. Ou, sendo sinceros, não sentem a inclinação ou o interesse por ela. A maioria dos seres humanos passa o tempo ganhando a vida, se ocupando de sua família ou resolvendo problemas. Não tem ocasião para se abstrair em simples contemplação abstrata. E enquanto tanto, na simples contemplação abstrata está contida uma força colossal. As pessoas capazes de se entregar a semelhante contemplação e que a praticam, reúnem tal energia, tal autoridade e peso de personalidade, que praticamente exercem uma influência mágica sobre aqueles que se aproximam. As pessoas capazes simplesmente de meditar sem entrar em transe, quer dizer de contemplar de maneira ativa, se convertendo no espelho de todo o ser, os que possuem essa capacidade de maneira inata, são muito poucas, porém existiram sempre entre todos os povos e em todas as épocas da humanidade. E precisamente são eles os eleitos como os intermediários entre o princípio escuro sobrenatural que tenta ao homem, e os homens como tecido social. A sociedade não é mais que um simples mecanismo, em que se encarna o poder que se esconde por trás da contemplação, o poder da tentação, expandido por este espaço cinzento entre o céu e a terra.

Anatomia Comparativa das Sociedades

Falamos brevemente sobre o que representa a tribo, em que tudo se encontra à vista: guerreiros, chefe, anciãos, que nessa estrutura arcaica não se sentem como os marginalizados-aposentados, senão como os verdadeiros senhores do tempo - gerontocratas. Os anciãos possuem um status especial porque estão a ponto de se reunir com o conjunto dos antepassados, a igreja invisível da tribo, porque a primeira e natural religião de todas as tribos pagãs é o culto dos antepassados. O antepassado, uma vez morto, se liberta do transcurso do tempo, se converte em eterno, passa à categoria das causas, em relação aos quais os vivos são tão somente a consequência, se trata da vitória mais evidente sobre o tempo. Ademais, cada um desses homens sabe que se deixa descendência, será eterno em sua memória e se unirá a essa igreja invisível. É por isso que os anciãos possuem o poder como os intermediários entre os antepassados e os vivos.

Passemos à sociedade tradicional. Sua estrutura é similar aos substratos de barro mais grosseiro e mais claro, mais sutil, que se sobrepõem um sobre o outro em três camadas, nas quais o refinado, a sutileza aumenta de baixo para cima. Abaixo, como se sabe, está o escalão mais primitivo. É a parte de baixo do triângulo: os trabalhadores mais simples, camponeses, os servos inferiores; sobre eles estão os pequenos comerciantes; por cima deles se situam os pequenos artesãos. É o triângulo mais simples da sociedade tradicional medieval. O segundo triângulo situado no meio começa embaixo pelos habitantes livres da cidade - proprietários; acima deles estão os comerciantes, que já tem a possibilidade de viajar, os cambistas, financistas, que tem contatos fora dessa localidade ou da região; sobre eles se situam os cavaleiros, guerreiros. E a continuação o triângulo superior: abaixo está o aparato do monarca, aparato do Estado; sobre ele estão os governadores ou representantes; sobre eles o próprio monarca, faraó, césar, etc. Assim são os três triângulos - três componentes hierárquicos fundamentais que constituem a base da hierarquia social tradicional.

Para compreender o segredo interior que caracteriza a estes componentes da anatomia social, há que se imaginar a cada um desses triângulos postos diante de um espelho: a imagem no espelho fecha o triângulo real até convertê-lo em um quadrado virtual. Nesse "espelho" hipotético se manifesta o quarto ponto, contido em cada um dos triângulos, porém invisível no espaço real: esse quarto ponto é a presença oculta sacerdotal dentro de cada capa hierárquica da pirâmide social que analisamos como triângulo. O fator sacerdotal invisível converte cada triângulo - sempre relativamente instável - na figura geométrica inerte mais estável: o quadrado.

A presença sacerdotal invisível acompanha a cada nível da pirâmide social. Abaixo também estão presentes os iniciados e ocultos ustaz, os sheij que atuam a nível dos pequenos comerciantes, pequenos artesãos; eles se encarregam de atar os de baixo nas redes específicas das estruturas de patronato, mantendo a estabilidade e explicando-lhes os problemas e as injustiças desse mundo. Os cavaleiros tem suas próprias ordens de cavalaria. E o estrato mais alto dos sacerdotes trabalha com o faraó, que representa a personificação do "Ser Supremo" aqui, entre os homens. Em última instância o faraó se identifica diretamente com o "Ser Supremo" e diz ao povo: "Sou vosso senhor supremo" (Corão 79:24).

César também se acreditava deus e obrigava todos os povos a lhe prestarem sacrifícios em seus templos, inclusive tentou obrigar aos judeus. Com César trabalha o nível sacerdotal mais alto, o que realiza a intermediação direta com o Ser Supremo.

Assim é a sociedade tradicional, que tem uma só finalidade, um só objetivo - extrair às pessoas de baixo para cima seu tempo, seu sentido, sua energia e transmiti-los para cima até o faraó e os sacerdotes, que alimentam com esse recurso essencial da humanidade o "Ser Supremo", no qual se realiza o equilíbrio de todas as forças que forma o grande cosmo. O "Cosmo" é um lugar em que cada instante seguinte contém menos que o anterior, e está submetido aos princípios da termodinâmica - o esfriamento, a entropia. Apesar disso, o objetivo da sociedade consiste em continuar sua existência. Quer dizer que a cada momento seguinte há que compensar a diminuição e esfriamento do meio ao redor da sociedade humano. Isso se compensa com a energia e o fluido vital que se espreme das pessoas desde baixo. O fluxo direto para cima, para o faraó: esse é o canal pelo qual se leva a cabo a compensação da entropia do meio natural para que a sociedade possa seguir existindo apesar da agressão do zero absoluto.

Porém quanto se pode receber de simples escravos, servos, artesãos, quanto se pode cobrar dos que possuem seu tempo físico, 25 horas e um círculo próximo elementar: 2-3 vizinhos, uns quantos parentes próximos, o amo-contratista e o vigia - um mundinho muito estreito e um espaço humano muito pobre. Seu trabalho físico não vale quase nada. Metaforicamente falando, semelhante sociedade pode mandar para cima cem rublos. Quando cada momento seguinte da existência da sociedade custa mais caro: amanhã terá que pagar cento e dez, depois de amanhã duzentos, no dia seguinte trezentos. A exigência do cosmo ao espaço humano cresce em progressão geométrica. A entropia atua como um aspirador que absorve a energia, absorve o fluido das pessoas e essas não podem dar mais de si, mais do que permite seu estado social de fato, sua infraestrutura social, suas forças produtivas. Resulta que faz falta o "progresso" para poder "pagar" ao cosmo. Os donos e organizadores do espaço humano, os sacerdotes, decidem realizar a reestruturação sistêmica da sociedade tradicional, que iniciam desde cima, porém o fazem de tal maneira que pareça que se produz desde baixo de modo orgânico. Eles realizam revoluções preventivas para renovar radicalmente a composição humana, modificar as posições que ocupam diferentes classes de seres humanos, e permitir que o barro mais tosco, que na ordem tradicional deve permanecer abaixo, por baixo do mais fino, suba para cima, para que se coloque em meio dessa pirâmide. Dessa maneira se produz a intensificação dos processos humanos, sutilização ou aperfeiçoamento das camadas que sobem de baixo, mobilização do recurso humano global. Não obstante, aqueles que governavam à humanidade em seu formato tradicional, ficam onde estavam e seguem governando à nova sociedade, depois de modificar ligeiramente e encobrir sua presença. Em outras palavras, em todos os tempos, independentemente dos níveis do desenvolvimento das forças produtivas, na civilização tradicional o mesmo que na época pós-industrial do pós-modernismo sempre manda a mesma elite, o mesmo sujeito do domínio, que organiza a alienação que de época em época vai crescendo. É importante compreender ademais, que essa elite não só possui a continuidade espiritual e metafórica, senão também física que atravessa as aparências cambiantes das épocas que se sucedem.

Agora falemos sobre como surge a sociedade contemporânea. O triângulo situado em meio da hierarquia tradicional se volta com a cúspide para baixo e desce até o fundo do novo sistema formado que chamamos a sociedade atual. Quem estava naquele triângulo tradicional? Acima, na cúspide do triângulo estavam os cavaleiros, no meio do triângulo os mercadores, e na base do triângulo os cidadãos livres, habitantes da cidade. O que ocorre quando esse triângulo está invertido e lançado para baixo, olhando com sua cúspide para o subterrâneo pré-humano? Aí onde estavam os cavaleiros, surge o proletariado das diásporas, os habitantes das favelas. Uma coisa une esse proletariado com seus predecessores medievais de armaduras de ferro, e que antanho haviam pertencido à cúspide social: a vivência religiosa da violência, em cujo nome vivem e sofrem a infâmia e a inutilidade de sua existência. Essa gente assim como os cavaleiros medievais está disposta a matar e a morrer e instintivamente sentem tal predisposição como o núcleo mesmo de sua religião. Esse proletariado da violência - lumpencavalaria da época contemporânea - é o combustível para o fogo da resistência permanente pela força da humanidade frente ao Sistema, agora e no futuro.

Por cima deles nesse triângulo invertido está situado o nível que na sociedade tradicional correspondia aos comerciantes. Na época contemporânea, dentro desse triângulo invertido que foi para baixo, os comerciantes se convertem em elementos do crime organizado. Os comerciantes da sociedade tradicional eram os aventureiros, os exploradores, intermediários entre terras distintas. Na sociedade tradicional pagavam o tributo aos cavaleiros, que com a mão de ferro lhes retiravam o dinheiro pelo direito de atravessar seus feudos. No sistema atual, esses aventureiros se convertem na máfia organizada, que "corta a tela" das favelas: recruta sicários e vende droga nas ruas. Por último, aqueles que no espaço tradicional eram os cidadãos livres, subordinados aos comerciantes e situados muito abaixo da casta dos guerreiros, se converteram hoje na classe dos funcionários públicos, financiados com as rendas do Estado: policia, distintos serviços especiais, trabalhadores sociais, tudo aquilo que organiza a fusão complexa da parte de massas da sociedade civil com a baixa burocracia. Os funcionários públicos encarna hoje o sistema nervoso da megalópole moderna, como regra, estão próximos ao crime organizado, ou fundidos com ele e juntos oprimem o proletariado sem direitos das favelas - os "cavaleiros caídos".

É a situação do triângulo do medo dentro da escada de três degraus da hierarquia tradicional que agora se converte na camada de baixo da sociedade. O que ocorre com o degrau que antes estava abaixo? Sobre para cima para ocupar o lugar do triângulo do meio, mas também invertido, quer dizer, a base para cima e o cume para baixo. No triângulo inferior de antes, acima se encontravam os artesãos independentes, sobre os quais se apoiava a camada seguinte constituída pelos cidadãos livres dos burgos. Hoje se converteram na boêmia sem classe, que como classe está acima dos que vivem das rendas estatais: policiais, professores, enfermeiras, dos quais já falamos. Herdam dos artesãos o espírito e a estilística da criatividade marginal, porém dentro da sociedade contemporânea começam a exercer as funções de alta cultura (pintores, atores, escritores, jornalistas). Aqueles que antes estavam situados na metade do triângulo de baixo, os pequenos comerciantes, hoje estão colocados na metade do triângulo do meio - se poderia dizer que no centro matemático de toda a hierarquia pós-industrial! - hoje foram o setor de serviços, que entre outros inclui o show-business, que controla estritamente a boêmia criativa.

A conversão mais interessante ocorre com os habitantes do fundo tradicional - servos, trabalhadores desqualificados, camponeses de toda índole. Hoje ocupam a parte de cima do triângulo do meio (recordemos que ao estar ao contrário, é sua base). De servos se converteram nos empregados das corporações - os yuppies. Uma gigantesca quantidade de absurdos habitantes de escritórios absurdos - managers, executivos e assessores de todo tipo - todos aqueles cujos antepassados espirituais pertenciam à servidão inferior. Sublinhemos que não se tratam dos clerks tradicionais (empregados) que tanto então quanto agora forma parte da burocracia, senão da fauna humana que representa uma camada parasitária precisamente dentro da parte trabalhadora da população. Esses parasitas são as células orgânicas das quais se compõem os corpos das corporações e, como é sabido, as corporações, não produzem nada por si mesmas, senão que se apropriam e capitalizam o produto produzido por alguém em alguma parte.

Por último, o triângulo superior da sociedade tradicional segue sendo o triângulo superior da sociedade contemporânea, porém também se dá a volta. Na sociedade tradicional, como recordamos, acima estava o rei, em meio a aristocracia, representantes do rei, governadores, etc., abaixo do aparato, os ditos clerks. Em sua forma invertida hoje a coisa está do seguinte modo. Acima ao invés do rei os clerks, o aparato estatal, a burocracia onipresente. No meio, no lugar dos representantes do rei, os governadores agora estão os partidos políticos, e abaixo de tudo, aí onde a cúspide aponta para as corporações que se encontram mais abaixo, estão os políticos individuais, representantes pessoais da nomenclatura, que hoje representam o princípio pessoal que no passado unicamente se realizava na figura do monarca.

E o que ocorreu com a aristocracia e os sacerdotes, acima de tudo com esses últimos, que na sociedade tradicional representavam dentro de cada triângulo o quarto ponto invisível, convertendo-o no quadrado virtual? Os verdadeiros reis que seguem sendo reis (e não suas imitadores para as massas humanas em forma de políticos) agora junto com seu círculo aristocrático próximo estão por cima da sociedade. Ao igual que a igreja separada do Estado ainda que em muitos casos seguem sendo nomeados nas constituições e simbolizam a soberania, porém já estão sacados fora da zona de responsabilidade. A nobreza mundial tomou nota do assassinato dos reis e depois do ocorrido com Carlos I da Inglaterra começou a construir o clube universal dos senhores, cuja sobrevivência estivera assegurada frente a qualquer sobressalto histórico. Quanto aos sacerdotes hoje formam uma casta ecumênica completamente fechada, cuja atuação já não acompanha a vida imediata dos triângulos descritos: essa casta agora serve como ponte diretamente entre superelite e o "Grande Ser". E ainda que a sociedade segue sendo o instrumento de alienação do recurso interior humano, agora já não leva o selo de sacralidade geral, própria do "mundo tradicional". Se a sociedade tradicional incluía o elemento espiritual, que acompanhava a cada camada que o compunha, a sociedade atual simplesmente se converteu em um golem de barro.

A Crise da Alienação e os Problemas do Movimento Global 

O que ocorre na realidade? Uma ingente quantidade dos camponeses, granjeiros, serventes, gente das camadas sociais baixas de ontem, hoje se transformaram em empregados corporativos, em yuppies, que se deslocam com seus trajes e seus computadores portáteis para os escritórios, passam ali as horas combinadas, realizam ações totalmente virtuais sem produzir nada, e entram em uma quantidade colossal de relações humanas que lhes determinam. Eles entregam enorme quantidade de energia. Não se trata da energia que se gasta arrastando pedras e que é fácil medir em joules. Trata-se da energia sutil do tempo interior que nas gentes de baixo, se pode dizer, que se concentra em uma porcentagem especialmente alta. Quando são promovidas à classe média se convertem em funcionários, que desempenham intermináveis papeis sociais: devem educar seus filhos, manter relações sociais, pagar quantidade de seguros de todo tipo e outros pagamentos, participar em uma multitude de iniciativas políticas locais, municipais e outras. Sua vida consiste em dar mais voltas que um esquilo colocado dentro de uma roda. Seu tempo se gasta em dezenas e centenas de direções distintas.

Dessa maneira o custo sobre a exploração da classe média a sociedade atual segue "pagando" ao segundo princípio da termodinâmica, ao cosmo, ao princípio do resfriamento, ao princípio do destino, ao tempo. Não obstante, esses recursos chegam a seu fim: ainda que o "bilhão dourado" (o número de seres humanos, habitantes do núcleo do sistema capitalista que, segundo Fukuyama, poderão seguir no "barco do progresso") se converteram em esquilos uqe correm dentro das rodas do tempo sem sentido, ainda ficam aproximadamente cinco bilhões de seres humanos, cujo tempo transcorre em um ritmo parecido ao da sociedade tradicional. São pobres e estão desnudos, ganham uma mísera diária com o esforço pessoal bastante primitivo para manter uma existência minimalista. Para poder aumentar o fluxo da alienação que provém dessa enorme massa de baixo, há que elevá-la ao nível do desenvolvimento da classe média ocidental. Mas para converter chineses, brasileiros, mexicanos, indianos, habitantes do Oriente Médio nos yuppies de Paris ou de Washington com suas gravatas e carteiras há que investir uma enorme quantidade de meios dos quais não dispõem os mestres da ordem mundial. As classes dirigentes os devoraram através da economia especulativa, através das futures transactions, através das transações com base em tecnologias que ainda não foram lançadas e que com cada vez maior frequência resultam ser fictícias. As classes superiores graças à pura especulação devorou os recursos que teriam podido transformar essas lebres que correm libres pelo campo em servos da sociedade que se pode esgotar.

O que significam recursos reais? No ano de 1917 na Rússia czarista viviam aproximadamente três milhões de representantes da nobreza e da intelligentsia e cento e cinquenta milhões de arcaicos mujik - camponeses. Em vinte anos em sua maioria esses camponeses foram convertidos em operários, funcionários, membros do partido, etc. Se reuniam em distintos comitês, gastavam seu tempo, entravam em contatos sociais, aprenderam a ler e escrever, derramavam uma torrente de energia que a URSS extraía e convertia em distintos projetos. No projeto de GOELRO (eletrificação do país), no projeto atômico, o projeto espacial. De onde surgiu tudo aquilo? Trata-se da conversão direta da energia humana. Para poder converter em vinte anos camponeses analfabetos em funcionários, personagens públicos, cidadãos com educação média, engenheiros, etc., dos que se podia sacar mil vezes mais que da Rússia czarista, havia que investir todos os ativos reais que houvesse no território do Império czarista. Arrancar os brilhantes dos corsets das princesas, confiscar os quadros do Ermitage, vender Rafael, tomar os grãos dos camponeses - tudo o que havia de real, tudo foi investido nesse projeto. E certamente, 20 anos depois, pelo território da Rússia andava outro homem completamente distintos, que desfilava com o moletom esportivo nos eventos oficiais, agitava a bandeira, participava nas Espartaquiadas, era membro da DOSAAF (Sociedade Voluntária de Ajuda ao Exército, Aeronáutica e Marinha), etc. E todavia seu avô ou seu pai com suas enormes barbas cavaram a terra com arado de madeira. Porém hoje não há esse dinheiro. Assim que ninguém pensa elevar aos cinco bilhões ao status "áureo". Ao invés disso os senhores da vida decidiram nos lançar pela beira do barco do progresso e passar à sociedade da informação, que promete se converter na mais férrea ditadura policial em toda a história da humanidade. Perante nós se abre a perspectiva da terceira sociedade - já falamos de outras duas, a tradicional e a moderna - a sociedade informacional-virtual, em que a antiga classe média será convertida em robôs, nos terminais dos fluxos de informação. E os outros cinco bilhões de seres humanos serão arremessados abaixo ao puro deserto, e se tentarem se sublevar como ocorreu na França, a policia especial em suas naves os massacrará desde o espaço com raios laser. Semelhante perspectiva não é uma novela fantástica, é o rumo com o qual teremos que nos confrontar amanhã. E é pelo que hoje nós - o proletariado, as diásporas - os que fomos cavaleiros de ontem, convertidos no novo proletariado, devemos nos ocupar de nossos direitos, de nossa sobrevivência política e histórica.