21/05/2014

Entrevista com Aleksandr Dugin - O Longo Caminho

por Guilherme Celestino



1 - O público em geral não o conhece, você poderia falar um pouco sobre seu caminho intelectual na Rússia?


Sinceramente, é um longo caminho. Primeiramente em minha juventude eu fui profundamente inspirado pelo Tradicionalismo de René Guénon e Julius Evola. Essa foi minha escolha definitiva de lado - ao lado da Tradição sagrada contra o mundo moderno (e pós-moderno). Essa escolha e todas as consequências ainda estão aqui no presente. Eu me posiciono firmemente pelos valores espirituais e religiosos contra a cultura pervertida e materialista decadente atual. O Tradicionalismo foi e permanece sendo central como foco filosófico de todos os meus desenvolvimentos posteriores.

No mesmo espírito eu descobri um pouco mais tarde a tendência ideológica da Revolução Conservadora e seu renascimento na Nova Direita francesa de Alain de Benoist que se tornou pessoalmente meu amigo e me influenciou diretamente. Ao mesmo tempo eu me interessei pelo campo da geopolítica, descobrindo as obras clássicas de Mackinder, Mahan, Spickman e Haushofer. Idéias muito similares eu identifiquei nos textos de eurasianistas russos as décadas de 20 e 30 que tentaram na imigração criar uma ideologia original combinando tradição, conservadorismo, conceitos eslavófilos com algumas noções contemporâneas no campo da geopolítica (Savitsky), linguística estrutural (Trubetskoy), direito (Alexeev), ciência histórica (Vernadsky) e daí em diante. Assim, esse foi o ponto de partida do neo-eurasianismo, desenvolvido por mim em meados da década de 80 quando os principais traços da nova visão global se tornaram claros para mim.

Mais tarde no início da década de 90 eu comecei a aplicar isso à análise política dos eventos contemporâneos no domínio doméstico e internacional, ampliando e detalhando o esquema geral do neo-eurasianismo. Assim eu fundei a escola russa de geopolítica, introduzindo os principais textos e autores bem como promovendo conceitos novos e originais. Ao mesmo tempo, eu lanceis as bases para o pensamento Tradicionalista tentando aplicar as idéias de Guénon e Evola à tradição cristã ortodoxa russa. Também eu explorei o campo da Revolução Conservadora russa partindo de valores históricos russos.

Tendo sido um anticomunista durante o período soviético eu mudei de opinião em 1991 diante da revolta liberal que eu julguei ser pior que o socialismo. O resultado dessa análise foi a primeira mudança séria em minha cosmovisão: eu rompi com o anticomunista me concentrando no antiliberalismo, o liberalismo sendo visto como o principal inimigo e a encarnação final do espírito da modernidade que sempre foi considerado por mim como o mal absoluto (no sentido de Guénon e Evola). A vitória do liberalismo sobre o comunismo era a prova, aos meus olhos, de sua natureza escatológica. Assim eu passei do tradicionalismo direitista mais clássico ao tradicionalismo de esquerda, algo chamado nacional-bolchevismo. Na verdade, não era realmente comunismo ou bolchevismo. Era e ainda é uma recusa total do liberalismo identificado como a ideologia que durante sua luta com comunistas e fascistas provou ser mais consistentemente moderna e idêntica à própria natureza, a própria essência da modernidade.

A virada resoluta da histórica política produzida em 1991 eu concebi como a confirmação de que fascismo e comunismo eram menos modernos e possuíam alguns traços antimodernos.

Isso era quase óbvio para o fascismo, mas muito menos óbvio para o comunismo. Assim eu propus uma leitura do marxismo e do socialismo a partir da Direita e uma leitura do Tradicionalismo a partir da Esquerda (Evola visto da sinistra - tal foi o nome de minha palestra em Roma em 1994 durante o congresso dedicado aos 20 anos de aniversário da morte de Evola).

Assim a década de 90 estiveram sob essa busca de uma síntese antiliberal entre direita e esquerda. Na política contemporânea isso significava a total recusa da política de Bóris Iéltsin e minha participação pessoal em vários grupos patrióticos de direita e de esquerda da oposição.

Esse período nacional-bolchevique durou de 1991 a 1998. A partir de 1998, com alguns passos do governo russo em favor do patriotismo (política Primakov) eu comecei a desenvolver uma versão moderada daquela e essencialmente a mesma ideologia política no contexto do Centro Radical. A idéia era que no Ocidente moderno, no Centro absoluto está o liberalismo (direita e esquerda ao mesmo tempo - direita na economia, esquerda no sentido cultural e social). Assim, para o Ocidente a síntese nacional-bolchevique dos dois extremos antiliberais é significativa e correta. Mas a Rússia possui uma estrutura política particular em que o liberalismo é algo formal e não essencial. É por isso que devemos promover a idéia de Centro Radical que não é uma criação artificial de algumas partes de direita e algumas partes de esquerda, mas se apoia em uma ideologia original russa que não é de forma alguma liberal, não sendo comunista ou nacionalista. O eurasianismo se encaixa aqui excelentemente, já que não é de direita ou de esquerda.

De 1998 a 2004 eu fui o assessor oficial do Presidente do Parlamento Russo, Seleznev, e também o diretor do Centro de Expertise Geopolítica na Duma russa.

Em 2000 Putin chegou ao poder. Essa foi a transição da imitação do liberalismo ocidental feita por Iéltsin para uma política russa mais orgânica. Essa era a época para o Centro Radical e o eurasianismo. O Movimento Eurasiano foi então formalmente construído como a rede daqueles que aceitavam a mesma filosofia política. Logo, os ramos externos do Movimento Eurasiano se seguiram e a estrutura se tornou internacional. Com Putin, minha posição que começou a se mover na direção do Centro Radical já em 1998 passou a se tornar bastante corrente. E as idéias eurasianas foram parcialmente aceitas pelo governo russo.

A partir dessa época minha posição foi garantida dentro do establishment político como a forma extrema, porém aceita, de atitude patriótica russa.

Nesse período, o conceito de Quarta Teoria Política foi finalmente elaborada, continuando as idéias de Centro Radical e eurasianismo. Aqui estava minha segunda mudança importante em meu desenvolvimento ideológico: a passagem da aceitação do comunismo e do nacionalismo em seus aspectos antiliberais a uma superação de qualquer tipo de modernidade política - incluindo comunismo e fascismo.

Desde 2008, quando os princípios gerais da Quarta Teoria Política estavam já claramente formulados eu renunciei a qualquer apelo à segunda ou terceira teorias políticas (comunismo e nacionalismo) e me concentrei exclusivamente na elaboração de uma Quarta Teoria Política completamente independente, rompendo quaisquer laços com a modernidade.

A Quarta Teoria Política é vista ao invés como a aliança entre pré-modernidade (tradicionalismo pré-moderno) e pós-modernidade (existencialismo heideggeriano e a centralidade do Dasein tomado como sujeito político).

Enquanto isso, Putin chegou ao poder pela terceira vez e este foi o momento de sua ruptura decisiva com o liberalismo. Agora Putin aceitou a orientação do eurasianismo e do Centro Radical se aproximando cada vez mais da Quarta Teoria Política. Então isso é o que está acontecendo hoje.

Simetricamente, minha posição no establishment político também muda - das margens patrióticas dos seguidores de Putin ao coração da hegemonia política. Assim, nesse exato momento, o realismo político de Putin está se unindo a minha Quarta Teoria Política e versão atualizada do eurasianismo. E é aqui que estamos. 

2 - O que é o "eurasianismo", que muitos dizem ser a estratégia geopolítica por trás das políticas externas de Putin?

O eurasianismo está baseado na visão multipolar e na recusa da visão unipolar da continuação da hegemonia americana.

O pólo desse multipolarismo não é o Estado nacional ou o bloco ideológico, mas o grande espaço (Grossraum) estrategicamente unido nas fronteiras da civilização comum. O grande espaço típico é a Europa, a unificação de EUA, Canadá e México, ou a América Latina Unida, a Grande China, a Grande Índia e em nosso caso a Eurásia.

A Eurásia é o território do antigo Império da Rússia ou da União Soviética. Nós o chamamos em outros termos, Grande Rússia (Bolshaya Rossia) ou Rússia como Eurásia. Para tornar firme o pólo independente nós precisamos unir diferentes países em uma entidade geopolítica, econômica e social centralizada.

A visão multipolar reconhece a integração na base da civilização comum. Assim falamos de uma civilização eurasiana comum não apenas a russos e eslavos e/ou povos ortodoxos mas também aos povos turcos e aborígenes da Ásia Central, Sibéria e Cáucaso. A política externa de Putin está centrada ao redor da multipolaridade e da integração eurasiana que é necessária para criar o pólo plenamente firme.

3 - O que o levou a apoiar Putin?

Eu expliquei isso em minha primeira resposta. O realismo político e o patriotismo emocional de Putin o fizeram se aproximar cada vez mais de minha própria posição geopolítica e ideológica. Eu apoio Putin agora porque ele declara e realiza objetivos e ideais que são essencialmente meus.

4 - Putin uma vez disse que o fim da URSS foi a maior tragédia geopolítica do século XX. O que você acha dessa afirmação?

A ênfase aqui deve ser feita na palavra "geopolítica". Isso ressalta que Putin lamenta não tanto o conteúdo ideológico da ideologia soviética, mas sim o colapso do espaço político unido já desde muito antes do bolchevismo e representando a Grande Rússia como entidade política baseada na similaridade civilizacional entre a história e as culturas de diferentes grupos étnicos e povos. O Ocidente sabe pouco ou nada da história real da Rússia. Às vezes eles pensam que a União Soviética foi uma criação puramente comunista e que Estados como Ucrânia, Cazaquistão ou Azerbaidjão eram independentes antes da URSS e foram conquistados pelos bolcheviques ou entraram à força no Estado soviético.

O fato é que eles nunca existiram enquanto tais e representavam tão somente distritos administrativos sem qualquer significado político ou histórico dentro do Império Russo, bem como dentro da URSS. Esses países foram criados em suas fronteiras atuais artificialmente apenas após o colapso da URSS e como resultado desse colapso.

Assim Putin quer enfatizar o caráter artificial, casual e infundado de tais processos e sugere que tais países artificialmente criados não são nada além de Estados falidos. Para impedir essa falha eles precisam ser integrados em um novo esquema geopolítico - que é a União Eurasiana.

A idéia da União Eurasiana não é conquistar ou forçar à esfera russa de influência países completamente independentes e bem sucedidos, mas impedir seu colapso inevitável anunciado em eventos como a crise georgiana de 2008 ou a ucraniana de 2014.

5 - O que você pensa da anexação da Criméia e dos protestos organizados por grupos pró-russos na Ucrânia oriental?

Durante as últimas semanas a Criméia se tornou parte integral da Federação Russa e algumas novas Repúblicas (Donetsk e Lugansk) apareceram no mapa político da ex-Ucrânia. Esse é o resultado lógico dos esforços das forças ultranacionalistas que realizaram um golpe de Estado em Kiev em março de 2014 para impôr a identidade ucraíno-ocidental sobre toda a população ucraniana. Mas o fato é que o leste e o sul da Ucrânia tem uma população com uma identidade cultural e histórica completamente diferentes.

A Ucrânia é um típico Estado falido extremamente artificial pós-soviético que nunca existiu na história antes de 1991. O oeste da Ucrânia possui uma identidade, e o sul e o leste possuem outra identidade, às vezes até diametralmente oposta. A primeira é pró-Hitler, banderita e fortemente antirrussa. A segunda é pró-russa, antifascista e ligeiramente pró-soviética (pró-Stálin). A população do sudeste pertence ao mundo russo (Russky Mir) e à civilização eurasiana. Daí a atual guerra civil e o retorno lógico das partes separadas à zona geopolítica russa.

Este é apenas o início do processo: nesse exato momento apenas 8 milhões com uma identidade eurasiana pró-russa anunciaram sua independência ou seu ingresso na Rússia. Mas há ainda pelo menos 12 milhões com a mesma identidade pró-russa ainda sob controle de Kiev. Assim, a luta continua.

6 - Seria a atual situação na Ucrânia um desafio ao renascimento da Rússia como superpotência mundial?

Sim, é. Se a Rússia for capaz de lidar com ela, estaremos vivendo em um mundo multipolar. Se a Rússia falhar a unipolaridade continuará por mais um pouco. Mas eu duvido que a hegemonia americana consiga resistir muito mais. Assim, eventualmente a Rússia vencerá.

7 - Como você avalia o papel da diplomacia russa na guerra civil na Síria?

Ela foi realmente ótima. Putin demonstrou ao mundo e na região que não há mais um lugar único em que decisões estratégicas sobre quem é o vilão e quem é o mocinho são tomadas. Os EUA e seus proxies sub-imperialistas no Oriente Médio (Arábia Saudita, Turquia e por aí vai) apoiam os rebeldes. Moscou e China apoiam Assad. Assim, há a posição firme e o exemplo a seguir sobre como o mundo multipolar deve ser. Há mais do que uma opção nessa situação crítica. E mais do que um ponto de decisões estratégicas centrais relativas a questões problemáticas.

8 - O que você pensa das leis russas anti-gays?

Elas são bastante corretas. O liberalismo insiste na liberdade e liberação de toda forma de identidade coletiva. Essa é a própria essência do liberalismo. Os liberais liberaram o ser humano da identidade nacional, da identidade religiosa, e daí em diante. O último tipo de identidade coletiva é o gênero. Assim, esse seria o momento de aboli-lo, fazendo dele arbitrário e opcional.

A maioria absoluta do povo russo se posicionam contrariamente a isso e possuem uma atitude conservadora em relação a identidade coletiva em geral e a identidade de gênero em particular.

Putin luta com essas leis não contra as relações homossexuais, mas contra a aplicação da ideologia liberal sob forma de lei obrigatória, contra a normativização e legitimação jurídica do que é considerado uma perversão moral e psicológica.

9 - O que você pensa da reação ocidental às leis anti-gays russas? Você acha que ela pode danificar a imagem russa?

A Rússia não é um país liberal, nem finge sê-lo. Assim, os liberais estão livres para criticá-la.

Mas no mundo há muitas sociedades não-liberais e conservadores que, ao contrário, aplaudem a posição russa nesse campo. As elites políticas do Ocidente estão reagindo contra a escolha russa de normas retas no âmbito do gênero. Mas as amplas massas dos países ocidentais apoiam Putin e a Rússia precisamente pela mesma razão.

10 - Você disse uma vez em um artigo para o Financial Times que o mundo precisa compreender Putin. Como o mundo pode fazer isso?

Compreender Putin é o mesmo que compreender o outro. A Rússia é o outro. Nós temos outros valores, outra história, outras idéias, outra moral, outra antropologia, outra gnoseologia em relação ao Ocidente liberal moderno.

Se o Ocidente identifica seus próprios valores com os universais é impossível compreender Putin.

Você pode criticá-lo e culpá-lo por tudo que ele está fazendo. Porque ele é outro (em relação ao Ocidente moderno), ele pensa de outra forma e age de outra forma. Ou você aceita o direito de ser outro - nesse caso você faz sua pergunta seriamente e a resposta demanda um conhecimento profundo da história russa e da cultura russa. Ou ela é apenas uma pergunta simbólica demonstrando a ausência de vontade de dar ao outro a chance de afirmar sua alteridade positivamente.

No último caso, você é obrigado a odiar o outro. Nós estamos preparados para dialogar com base na compreensão mútua do outro. Mas estamos preparados para o ódio vindo do Ocidente também.

Nós conhecemos bem as maneiras eurocêntricas, culturalmente racistas, universalistas e imperialistas do Ocidente ao lidar com o outro. 

Assim, é melhor tentar nos entender. Tentar ler nossos clássicos com atenção. Tentar abarcar o significado de nossa filosofia cristã ortodoxa, nossa teologia, nossos autores místicos, nossas estrelas e nossos santos, nossos poetas e nossos escritores (Dostoévski, Pushkin, Gogol). E aí você certamente considerará fácil compreender Putin, compreender a Rússia, compreender a todos nós.