01/07/2016

Ananda Coomaraswamy - O Sentido da Morte

por Ananda Coomaraswamy



"Ez ist nieman gotes riche wan der ze grunde tót ist" - Meister Eckhart (Pfeiffer ed., p. 600)

O sentido da morte está inseparavelmente ligado ao sentido da vida. Nossa experiência animal é apenas de hoje, mas nossa razão toma contas também do amanhã; daí, na medida em que nossa vida é intelectual, e não meramente sensorial, nós estamos inevitavelmente interessados na questão, O que acontece "conosco" no amanhecer da morte. Essa é, evidentemente, uma pergunta que só pode responder em termos do que ou quem "nós" somos agora, mortal ou imortal: uma questão da validade que ligamos, por um lado, a nossa convicção de ser "este homem, tal e tal" e, do outro lado, a nossa convicção de ser incondicionalmente.

Toda a tradição da Philosophia Perennis, oriental e ocidental, antiga e moderna, faz uma distinção clara entre existência e essência, devir e ser. A existência desse homem tal e tal, que fala de si mesmo como "Eu", é uma sucessão de instantes de consciência, dos quais nenhum é igual a outro; em outras palavras, este homem jamais é o mesmo homem de um momento para o próximo. Nós conhecemos apenas passado e futuro, nunca um agora, e assim jamais há qualquer momento em relação ao qual possamos dizer de nosso eu, ou de qualquer outra apresentação, que ele "é"; assim que perguntamos o que ele é, ele já se "tornou" outra coisa; e é apenas porque as mudanças que ocorrem em qualquer período breve são normalmente pequenas que nós tomamos o processo incessante por um ser real.

Isso se sustenta tanto em relação à alma quanto em relação ao corpo. Nossa consciência é uma corrente, tudo flui, e "você jamais molha os pés duas vezes nas mesmas águas". Ademais, consideradas individualmente, cada corrente de consciência teve um início, e deve também ter um fim. Mesmo que assumamos que uma continuidade individual de consciência possa sobreviver à dissolução do corpo (como não seria inconcebível se supôssemos a existência de uma variedade de suportes substanciais não tão grosseiros quanto, mas mais sutis do que, a "matéria" que nossos sentidos normalmente registram), é evidente que tal "sobrevivência da personalidade", ainda envolvendo uma duração, não dá prova de que tal existência deva durar para sempre. O universo, independentemente de quantos diferentes "mundos" (i.e., loci de compossíveis) se possa pensar que ele abarque, não pode ser pensado separado do tempo; nós não podemos, por exemplo, perguntar O que Deus estava fazendo antes de criar o mundo? ou O que ele estará fazendo quando ele acabar? porque o mundo e o tempo são concomitantes e não podem ser pensados em separado. Se nós supormos que o universo teve um começo, nós também supomos que isso signifique que o que quer que exista no tempo e no espaço deve chegar a um fim mais cedo ou mais tarde. Nós enfatizamos este ponto porque é importante perceber que as "provas" espíritas da sobrevivência da personalidade, mesmo que aceitemos sua validade, não são provas de imortalidade, mas apenas de um prolongamento da existência pessoal. Presumir uma sobrevivência da personalidade é apenas adiar o problema do sentido da morte.

Toda a tradição da qual estou falando assume, então, e nesse sentido concorda com a opinião do "materialista" ou do "nada-mais", de que para este homem, tendo tal nome, aparência, e qualidades, não há possibilidade de uma imortalidade; sua existência sob quaisquer condições é uma sempre em devir, e "todo mudar é um morrer". É sustentado, também com base na autoridade e na razão, que "este homem" é mortal, e que "não há consciência após a morte". Tudo que nasce deve morrer, tudo que é composto deve se decompor, e seria inútil lamentar pelo que é inerente à própria natureza das coisas.

Mas a questão não termina aqui. É verdade que nada que seja mortal por natureza pode se tornar imortal, não importando quanto possa durar. A tradição, porém, insiste em que devemos "conhecer nosso eu", o que e Quem somos. Ao confundirmos nossa intuição-de-ser ou consciência-de-ser-assim-e-assado, nós podemos ter esquecido de nós mesmos. O caso é, na verdade, um de amnésia e identidade trocada. Lembremos que uma "pessoa" é primariamente uma máscara e disfarce adotado, que "todo o mundo é um palco", e que pode ter sido uma ilusão um tanto infantil ter assumido que as dramatis personae [o "elenco"] eram as "próprias pessoas" dos atores. Do ponto de vista de nossa tradição, o cogito ergo sum cartesiano ["Penso, logo existo"] é um absoluto non sequitur ["Não se segue"] de um argumento circular. Porque eu não posso dizer cogito ["Eu penso"] realmente, mas apenas cogitator ["Pensamento"]. "Eu" nem penso, nem vejo, mas há um Outro que vê, ouve, pensa em mim e age através de mim; uma Essência, Fogo, Espírito ou Vida que não é mais ou menos "minha" do que "sua", mas que nunca se torna alguém; um princípio que informa e vivifica um corpo após o outro, e em relação ao qual não há outro que transmigre de um corpo para o outro, um que nunca nasce e nunca morre, apesar de presente em todo nascimento e morte ("nem um pardal caiu no chão..."). Esse é uma Vida que é vivida dove s'appunta ogni ubi ed ogni quando [Onde o "quando" e o "onde" estão focados], um lugar sem dimensões, e um agora sem duração, do qual a experiência empírica é impossível, e que só pode ser conhecido imediatamente. Essa Vida é o "Fantasma" do qual "abrimos mão" quando este homem morre e o espírito retorna a sua fonte e o pó ao pó.

Toda nossa tradição, por todo lugar, afirma que "há dois em nós"; as "almas" mortal e imortal platônicas, nefesh (nafs) e ruah (ruh) hebraica e islâmica, a "alma" e a "Alma da alma" de Philo, O faraó egípcio e seu Ka, o Sábio Interior e o Exterior dos chineses, o Homem Interior e Exterior dos cristãos, psyche e pneuma, e o "eu" (atman) e o "Eu Imortal do eu" (asya amrta atman, antah purusa) - uma a alma, eu ou vida que Cristo demanda que "odiemos" e "neguemos", se quisermos segui-lo, e a outra alma ou eu que pode ser salvo. Por um lado, somos comandados "Conheça-te a ti mesmo", e pelo outro lado, "Isto (o Eu Imortal do eu) é tu". Levanta-se então a questão, Em quem, quando eu ir adiante, deverei seguir? Em meu eu, ou em seu Eu Imortal.

Depende da resposta para essa pergunta a resposta para a pergunta, O que acontece com o homem após a morte? É evidente, porém, do que foi dito, que essa é uma pergunta ambígua. Com referência a quem se pergunta, este homem ou o Homem? No caso desse homem, nós só podemos responder perguntando, O que há nele que poderia sobreviver além de como herança para seus descendentes? e no caso do Imortal, apenas perguntando, O que há nele que morra? Se nessa vida - e "uma vez fora do tempo, sua chance se foi" - nós lembramos nosso Eu, então "Tu és isto", mas caso contrário, então "grande é a destruição".

Se nós conhecemos aquele Homem, podemos dizer com São Paulo, "Eu vivo, porém não eu, mas Cristo em mim". Quem quer que possa dizer isso, ou seu equivalente em qualquer outro dialeto der einen Geistessprache, é o que é chamado na Índia um jivan-mukta, um "homem livre aqui e agora". Este homem, Paulo anunciou sua própria morte; as palavras "Contemplem um homem morto andando" poderiam ter sido ditas sobre ele. O que dele permaneceu quando seu corpo cessou de respirar, senão Cristo? - aquele Cristo que disse, "Ninguém subiu ao céu senão aquele que desceu do céu, o Filho do Homem que está no céu."

"O reino do Céu não é para ninguém além dos completamente mortos" (Meister Eckhart, Evans ed. I, 419). Assim, nas mesmas palavras do Mestre, "a alma deve matar a si mesma". Pois o que mais significa "odiar" e "negar" a nós mesmos? Não é verdade que "toda a Escritura clama pela liberdade do eu"?

Como l'uomo s'eterna? ["como o homem se torna eterno"] A resposta tradicional pode ser dada nas palavras de Jalalu'd-Din Rumi e Angelus Silesius: "Morra antes de morrer". Só os mortos podem saber o que significa estar morto.