02/08/2017

Andrew Korybko - A América do Sul na Ordem Multipolar Emergente

por Andrew Korybko



A Nova Rota da Seda

A China avança com seu plano de construir a primeira Ferrovia Transoceânica (TORR [Trans-Oceanic Railroad]) entre o porto atlântico brasileiro de Santos e sua contraparte pacífica peruviana de Ilo, e visualiza-se que este projeto formará a medula do futuro geopolítico sul-americano na Ordem Mundial Multipolar emergente. O continente está separado da Afro-Eurásia pelos Oceanos Atlântico e Pacífico, diminuindo assim a prioridade imediata que os motores multipolares da Rússia e da China dão a essa massa terrestre. É verdade que o Brasil é o único membro hemisférico ocidental do BRICS e que isso proporcionou um novo impulso para o envolvimento de Moscou e Pequim com Brasília, mas as distâncias geográficas que separam o Estado sul-americano de seus homólogos eurasianos sempre serão um obstáculo para relações comerciais mais próximas. A Rússia não tem a capacidade de satisfazer as expectativas econômicas do Brasil a esse respeito, mas a China é uma história completamente diferente e está muito mais em sintonia para abraçar novos parceiros neste setor.

A visão da China de Um Cinturão Uma Estrada (OBOR [One Belt One Road]), popularmente conhecida como Nova Rota da Seda, é uma política inovadora de investimentos globais em infraestrutura projetada para amarrar o resto do mundo mais perto da economia chinesa, abrindo assim novos mercados para todos os países conectados. Isto é especialmente importante para a China na medida em que ela procura novos parceiros para comprar os bens extras que são produzidos como resultado de sua crescente capacidade. O dilema da China é que sua industrialização historicamente rápida nos últimos 30 anos tem sido quase bem sucedida demais no sentido de que a estabilidade do país inteiro seria abalada se esse processo desaelerar ou desastrosamente reverter seu impulso. A República Popular não tem como suportar o grande descontentamento social que poderia explodir em Revoluções Coloridas ou pior no caso de milhões de chineses estarem sem trabalho e desempregados nas maiores megacidades do mundo. Portanto, a China é obrigada a manter a produção em seus níveis padrão como a maneira mais estável de enfrentar a crise econômica global, esperando que as novas rotas comerciais que se abrem nos próximos anos como parte do projeto OBOR compensem qualquer excesso de capacidade que inadvertidamente resulte durante este tempo.




A Ruptura Filipina e o "Mar da China Meridional Americano"

É uma aposta arriscada, e uma que poderia se voltar dramaticamente contra a China se a OBOR for completamente sabotada e daí a razão pela qual os EUA estão visando seus elos mais fracos com as suas guerras híbridas. A América do Sul figura nesta grande equação como sendo o fornecedor de matéria-prima mais distante da economia chinesa, além de seu mercado mais distante. A China só pode acessar a América do Sul e o resto da América Latina de forma mais ampla através de rotas comerciais marítimas, e é por isso que é tão importante para a China manter e expandir sua frota marinha mercante e garantir suas linhas marinhas de comunicação (SLOC [Sea Lines of Communication]). Do ponto de vista inverso, os EUA querem conter a China tanto quanto possível através do estreitamento dos pontos marítimos de congestão do Leste Asiático, a fim de pressionar Pequim no caso de um futuro conflito, o que explica por que está trabalhando em conjunto com o Japão na militarização das Ilhas Diaoyu/Senkaku do Mar da China Oriental. O pensamento é de que, se a China puder ser "cercada" nesta via navegável, o comércio de Pequim com o Hemisfério Ocidental poderia sofrer em momentos tensos, assim como os seus negócios comerciais marítimos com a UE e a África poderiam ser afetados através do aperto do nó da "Coalizão de Contenção Chinesa" no Mar da China Meridional.

Porque por mais teoricamente "brilhante" que este plano possa parecer no papel, essa estratégia é inerentemente falha porque nunca foi acomodada para nenhum dos possíveis pivôs geopolíticos pro-chineses dos estados da ASEAN [Associação de Nações do Sudeste Asiático], como o que o Duterte das Filipinas realizou magistralmente imediatamente após entrar no cargo. Como resultado desse divisor de águas, a China atravessou a "primeira cadeia de ilhas" do bloco de contenção dos EUA na Ásia e, desse modo, tem acesso marítimo mais seguro aos oceanos Índico e Pacífico. De acordo com este estudo, os grandes planejadores chineses podem agora avançar com seu objetivo final de transformar a América Latina em uma gigantesca "base operacional" para contra-atacar e conter estrategicamente os EUA através de "saltos entre ilhas" por todas as linhas marítimas de comunicação nos pequenos países do Pacífico, até o "quintal" dos EUA. A ambição de longo prazo sempre foi espelhar os movimentos dos EUA de uma maneira semelhante à que um jogador do antigo jogo chinês de "go" faz com seu oponente, o que, nesse sentido, se traduz na China transformando o Caribe na "Mar da China Meridional Americano" usando o Canal da Nicarágua e as relações econômico-estratégicas existentes no hemisfério para facilitar uma presença chinesa robusta de espectro completo no futuro, bem na porta dos EUA.

Atormentando os EUA com a Ferrovia Transoceânica

O componente inseparável centro-americano/caribenho desta política de mudança de paradigma é dependente dos sucessos que a China tenha na sua metade sul-americana complementar, daí a razão pela qual a massa terrestre é o foco dessa obra. A Ferrovia Transoceânica (TORR), também chamada de Oceano Gêmeo, é o primeiro investimento da Nova Rota da Seda da China na parte sul do supercontinente e tem o potencial emocionante para repaginar de forma fundamental a geopolítica da América do Sul na direção decisiva da multipolaridade. O projeto é essencialmente a primeira via ferroviária transcontinental nesta parte do mundo e visa conectar a megacidade do Brasil de São Paulo ao pequeno porto costeiro peruano de Ilo por meio da Bolívia. Os planos originais demandavam que ela seguisse a rota da Estrada Interoceânica através dos planaltos brasileiros e da Amazônia ocidental até os Andes peruanos, mas a versão modificada atualmente em discussão decidiu simplificar a rota geograficamente tortuosa e passar diretamente pela Bolívia. Embora seja uma escolha econômica sábia, isso perigosamente torna a viabilidade do projeto em grande parte dependente da estabilidade do Estado de trânsito da Bolívia, o qual, como será explicado mais adiante no trabalho, é excepcionalmente vulnerável a guerras híbridas provocadas pelos americanos no mesmo estilo que as que causaram tanto estrago nos estados do Hemisfério Oriental, como a Síria e a Ucrânia.

A título de comparação, aqui um mapa da Rodovia Interoceânica:

https://www.graphicnews.org/pages/nl/27409/ZUID-AMERIKA-InterOceanic-highway_infographic

Agora aqui a rota que a TORR tomaria originalmente (observem que ela era para começar perto do Rio de Janeiro e não de São Paulo):

https://www.theguardian.com/world/2015/may/16/amazon-china-railway-plan

Agora aqui com o que especialistas dizem que a TORR vai parecer se tudo seguir de acordo com os últimos planos:

http://1m1nttzpbhl3wbhhgahbu4ix.wpengine.netdna-cdn.com/wp-content/uploads/2016/06/Twin-Ocea-Railway-map.jpg

O que é mais importante a se prestar atenção é que São Paulo é mais uma vez o ponto terminal para o projeto e que também há planos para expandir essa coluna de infra-estrutura para o sul no resto do Cone Sul do continente (ou seja, Argentina e Chile). Isso poderia aprofundar substancialmente a integração entre todos os países parceiros, o que também resultaria em uma fusão logística de fato do Mercosul e da Aliança Pacífico. Esses dois blocos e a competição provocada pelos americanos entre eles serão elaborados em profundidade no capítulo final do livro, mas neste momento é suficiente para o leitor perceber que sua rivalidade poderia ser produtivamente superada de forma multipolar através do inovador corredor econômico chinês cuja ponta-de-lança é o TORR. As matérias-primas sul-americanas (lítio, energia, produtos florestais, minerais, etc.), recursos agrícolas e vários produtos industriais fluiriam para a Ásia ao mesmo tempo em que os produtos acabados chineses entrarão na massa continental meridional, iniciando assim um acordo de ganha-ganha para todas as partes envolvidas.

Por outro lado, no entanto, se os EUA pudessem adquirir o controle de cada um dos países ao longo desta rota, então seria em uma posição privilegiada para apertar o poder sobre a América do Sul e mover o continente progressivamente unificador na direção da servidão unipolar, daí a maior importância atribuída à Bolívia no presente. Os EUA também poderiam perturbar o comércio ao longo desta rota, se alguma vez se sentir ameaçado pelo influxo da influência econômica chinesa em seu "quintal", embora provavelmente se esbarrasse contra a oposição vocal de seus "parceiros" porque eles certamente terminariam perdendo o que seria previsivelmente um relacionamento comercial mutuamente produtivo. Para resumir tudo, os EUA são atormentados pelo pensamento de que a TORR poderia rapidamente criar uma avenida incontrolável para a influência chinesa para se infiltrar na América do Sul e empurrar a República Popular do segundo maior parceiro comercial do continente para o topo (com todos os benefícios estratégicos resultantes que o acompanham), o que motiva o aparato do "Estado Profundo" de Washington (as burocracias militar, de inteligência e diplomática permanentes) a tomar medidas pró-ativas para evitar que esse cenário ocorra, e daí a atratividade da Guerra Híbrida.